Um gelado é tudo o que é delicioso, traduzido o frio para a nossa língua

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É em Setembro que os gelados mais sorriem dentro das nossas bocas. O calor já não os derrete tanto; já não os torna tão urgentes; deixando-os ser apreciados como merecem, sem pressa.

Já experimentou vestir um casaco quente e um cachecol e sentar-se dentro de uma câmara frigorífica a comer um bom gelado? Comi um dos melhores gelados da minha vida em Halifax, na Nova Escócia, estavam 20 graus negativos.

Se bebe cafés quentes no Verão, não deverá espantar-se com a sintonia.

O calor da língua humana, para não falar nas lambareiras enzimas da nossa saliva, são suficientes para derreter o gelado. Cerca de metade de um gelado é ar, um quarto é água e só os 25% que restam (dos quais 15 % são açúcares) resistem sapidamente à crueldade da descongelação rápida.

Quando éramos pequenos, fazíamos tudo para as guloseimas - que incluíam iogurtes e gelados - durarem mais tempo. Usávamos colheres mais pequenas e fazíamos render cada colherada, espalhando a bondade por todas as redondezas da boca.

Os portugueses, infelizmente, têm uma injustificável obsessão sazonal com coisas boas como o Vinho do Porto (no Natal), os espumantes (no fim-do-ano e nos aniversários) e gelados (nos dias de calor, em férias, na praia, à tarde).

Em Itália comem-se gelados ao longo do dia e ao longo do ano. Chegam a comer-se de trombas, como quem cumpre uma obrigação ou toma um comprimido. São pequenos luxos quotidianos, como as bicas.

Os preços dos bons gelados artesanais em Portugal são muito simpáticos. É mais luxuoso do que ir lanchar e escusa de ser tratado como ocasião especial na época do Verão.

Acontece com os bons gelados o que acontece com os bons pães: os consumidores pactuam tanto com as versões industriais que acabam por habituar-se a elas. Depois queixam-se quando desaparecem as que são feitas e que sabem como deve ser.

As boas gelatarias têm de ser acarinhadas. Em Lisboa e no Porto deve experimentar as sete ou oito casas onde fazem gelados e sorvetes artesanais, a partir de frutas frescas da época e sem a utilização de corantes, intensificadores de sabor, óleos vegetais, etc.

Escolha as casas de que gostou mais e visite-as assiduamente, para acompanhar a sucessão de criações. Desconfie-se da gelataria que tem sempre os mesmos sabores: são como os restaurantes com ementas fixas, insensíveis à época e aos mercados.

Nas boas gelatarias devem estar agora a aparecer as frutas de Setembro, como a amora. As frutas devem ser, de preferência, nacionais (com indicação de proveniência). Os ingredientes devem estar todos à vista, para quem os queira inspeccionar - uma velha prática inaugurada pela família Santini nos anos 1960, em Cascais.

Sobretudo, perca os preconceitos e deixe as decisões às suas papilas degustativas. Leia um livro informado e recente sobre o vasto mundo do ice cream, dos gelati, dos sorvetes e granizados: por exemplo, The Perfect Scoop, do magnífico blogger David Lebovitz, que custa cerca de 12 euros.

Depois de ler a entrevista que Manuela Carabina, a criadora dos gelados da Fragoleto, em Lisboa, deu a Alexandra Prado Coelho aqui no Fugas de 23 de Junho deste ano, tenho vindo a apaixonar-me pelos gelados que ela faz. São sensacionais.

Trata-se de uma revolução na pureza e na ousadia de fazer gelados.

Comer os gelados dela - combiná-los, compará-los, segui-los - é como ser criança outra vez. Foi como a primeira vez, há 50 anos, que provei o meu primeiro gelado Santini. Fica-se estarrecido, cheio de apetites, curiosidades e surpresas.

Não vou facilitar as coisas aos leitores: a facilidade é inimiga do prazer. O ideal será ir a Lisboa, à Rua da Prata, 61 (telefones 925765382 - 936152487) pelo menos duas vezes por semana, para acompanhar a aventura.

Mas há outras gelatarias interessantes espalhadas pelo país. Estão bem. Nós é que estamos mal. Temos de arranjar maneira de nos encontrarmos com elas.

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