Tudo está bem desde que seja Sócrates a mandar

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ADRIANO MIRANDA

Doutrina de um filósofo antidemocrático e teórico do autoritarismo que aderiu ao nazismo inspira acção do primeiro-ministro

Se Portugal tivesse ganho à Espanha na África do Sul era bem provável que, no dia seguinte, o Governo se tivesse abstido de utilizar a golden share na assembleia geral da PT e não estivesse montada toda a actual trapalhada. Mas como, infelizmente, Ronaldo não esteve à altura de Eduardo, José Sócrates farejou a oportunidade de cavalgar uma causa "patriótica" e armou-se em "Padeira de Aljubarrota". Pelo caminho mostrou os seus piores instintos - tal como pelo caminho o país também mostrou a sua menoridade política.

A principal razão porque digo que a golden share podia não ter sido utilizada é simples: os argumentos dados para não vender a Vivo não fazem sentido. Até hoje ninguém procurou fundamentar o "interesse estratégico" da Vivo para Portugal, sobretudo de qual o interesse estratégico em manter uma empresa no Brasil a meias com um sócio hostil. Só se for para destruir valor. Para além de que é patético dizer que sem a Vivo a PT deixaria de ter estímulo ou dimensão para investir em investigação e desenvolvimento. E também nunca disse que a venda da Vivo pelo preço oferecido pela Telefónica não era um bom negócio, tanto mais que traria liquidez a uma empresa altamente endividada, traria liquidez aos seus accionistas e permitiria ao Estado encaixar uma importante receita fiscal.

Não fosse o tradicional nacionalismo serôdio - predominante à direita - e o nosso não menos tradicional ódio, e inveja, face ao investidor privado - predominante à esquerda -, e a argumentação oficialista não teria passado incólume. Pior: não teríamos assistido ao triste espectáculo da convergência de todos - repito: todos - os partidos portugueses na condenação de um negócio que não lhes dizia respeito. Exacto: não lhes dizia respeito. Como não lhes diria respeito uma eventual venda pela Jerónimo Martins dos seus activos na Polónia, ou pela Sonae das suas fábricas na Alemanha, ou pela EDP das suas operações nos Estados Unidos.

As divergências da liderança do PSD relativamente à utilização da golden share - um sinal de bom senso a que a decisão do Tribunal Europeu veio dar razão - foram o único ponto de dissensão numa paisagem uniformemente patrioteira que atingiu o paroxismo do desnorte e da imbecilidade nas declarações de Vitalino Canas. Como maestro na vaga populista destacou-se José Sócrates que, neste episódio, revelou de novo até que ponto a sua acção política se inspira nas lições de um filósofo que apoiou o nazismo, Carl Schmitt.

Vejamos quais foram, em última análise, os argumentos de fundo do veto governamental. Estão na entrevista de Sócrates ao El Pais: "Os accionistas não podem violar a vontade do Estado"; "Telefónica devia ter-nos ouvido"; "um primeiro-ministro não pode deixar-se encurralar"; ou "nenhum Governo gosta que lhe torçam o braço". Em suma: tudo teria sido diferente se os accionistas privados - que negociaram entre eles à exaustão - tivessem envolvido José Sócrates nas suas negociações. Como ele escreveu no dia seguinte, "o Estado limitou-se a não permitir que os seus interesses fossem desconsiderados e ignorados", sendo que como o Estado nunca afirmou outros direitos estatutários que não os da golden share, a "desconsideração" resumiu-se a não ter feito passar as negociações por São Bento. Apesar de ser extraordinário que alguém que passou os últimos meses a dizer que não sabia do negócio entre a PT e a TVI reivindique agora o direito a conhecer tudo, o que está em causa no conjunto destas declarações é uma visão do Estado profundamente iliberal e antidemocrática, na linha de Carl Schmitt.

Schmitt, um adversário da democracia "burguesa" e do parlamentarismo da República de Weimar que se tornou num entusiasta do regime hitleriano, defendia que o poder soberano é aquele que decide nos casos de excepção - exactamente o sentido da golden share tal como Sócrates o interpreta. Como Schmitt escreveu em "Da Ditadura", o soberano, o governante, "tem o monopólio da decisão final". Sócrates não diria melhor: a sua golden share não é mais do que o "estado de emergência" ditatorial teorizado pelo jurista alemão. De resto, o nosso primeiro-ministro, com o seu soberano desprezo pelo compromisso e pelo Parlamento, também poderia subscrever a visão que Carl Schmitt tinha das democracias abertas e liberais: "A sua essência é a negociação, a meia medida cautelosa, na esperança de que a disputa definitiva possa ser transformada num debate parlamentar e a decisão fique suspensa de uma discussão sem fim". Num estilo menos sofisticado e mais de pegador de touros, foi isso que Sócrates disse ao El Pais: "Não tenho medo da solidão na hora de tomar decisões". Ou seja, ele decide, não discute.

Toda a sua retórica, neste caso como em tantos outros, segue também a visão de Carl Schmitt desenvolvida em "O Conceito do Político": "A distinção à qual podemos reduzir todas as acções e motivações dos políticos é a distinção entre amigos e inimigos". De facto, a forma como, neste conflito como em quase todos os conflitos, Sócrates distinguiu entre "os seus" e "os outros", definindo círculos de amigos a quem exige fidelidade total e de inimigos a quem não reconhece quaisquer direitos, aproxima-o de novo deste teórico do autoritarismo. Até a forma como atacou a Comissão Europeia encaixa bem nesta forma de olhar para a política.

Por fim, em Sócrates tudo é instrumental e o que é verdade hoje é mentira amanhã. Só assim se compreende que tenha dito, domingo, no El Pais, que "em muitas das empresas que desempenham um papel importante nas economias, como as de energia e telecomunicações, os direitos especiais dos Estados (...) são uma boa forma, uma forma light, de preservar o interesse geral", para, na quarta-feira, Teixeira dos Santos vir anunciar que não haverá golden shares no processo de privatizações da GALP, da REN ou da EDP.

De resto, a própria noção que Sócrates tem dos poderes e deveres da maioria em democracia, assim como a sua relação com o Parlamento, enquadram-se bem na doutrina de Schmitt, para quem o Fuhrer "era a lei", e para quem a lei era "a expressão da vontade do povo" e não dos seus representantes parlamentares (não por acaso este Governo tem uma enorme tendência para legislar por via de autorizações parlamentares).

Ao dar-se a si próprio o lugar central e, no limite, único em todos os eventos políticos, ao confundir - como confunde no texto que escreveu para o PÚBLICO - o Estado com o Governo e o Governo com ele próprio, o primeiro-ministro facilmente vê o seu interesse particular como sendo o interesse geral. Daí que, no momento em que o seu interesse particular foi lançar uma cavalgada patrioteira, nem sequer se interrogou sobre as consequências perniciosas para o interesse geral do veto à venda da Vivo. E, neste momento, Portugal está a perder. Jornalista (www.twitter.com/jmf1957)

PS1Querer reabrir a discussão sobre a regionalização numa altura destas é demencial e só se compreende para agradar a certas clientelas políticas. É mesmo disso que o país necessita quando enfrenta uma situação em que tem de fazer diminuir drasticamente a despesa pública. Para mim, não há nada a discutir enquanto o Estado não devolver aos cidadãos poderes e funções que usurpou e exerce com inutilidade e desperdício.

PS2Lê-se e não se acredita: só o motorista da viatura em que seguia, a alta velocidade, o secretário-geral do Sistema de Segurança Interna foi acusado na sequência do acidente de há oito meses na Avenida da Liberdade, em Lisboa. Tramou-se o mexilhão. O alto responsável que lhe deu ordem para acelerar para chegar a tempo a uma cerimónia inútil de tomada de posse de inutilidades (alguns governadores civis) safou-se, como é tristemente habitual em Portugal. Revoltante, no mínimo.

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