O significado de Hollande

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Hollande europeizou a política francesa, Merkel está a nacionalizar a política alemã

1.São legítimas as múltiplas leituras sobre o significado e as consequências da eleição de François Hollande para o Eliseu. Como é perfeitamente compreensível o entusiasmo que essa eleição suscita por cá e por essa Europa fora, que não cabem nas habituais fronteiras políticas entre direita e esquerda, antes têm mais a ver com a forma como se avalia a gestão desta tremenda crise europeia. O pior erro que se poderia cometer seria aprisionar esse significado na mera dicotomia entre austeridade e crescimento. Muita gente, sobretudo aqueles que fizeram da "austeridade" (no sentido de "só austeridade", porque a austeridade é precisa) o seu credo político, está a tentar fazê-lo, reduzindo tudo à inevitabilidade da primeira e ao irrealismo da segunda. É uma posição difícil de sustentar.

Que a estratégia imposta pela Alemanha com o beneplácito da França não conduziu a grandes resultados era já uma evidência antes da eleição do novo Presidente francês. O debate sobre a necessidade de equilibrar as políticas de redução do défice com medidas europeias que animassem a retoma estava já em cima da mesa. Nem ninguém é cego ao ponto de não ver os resultados da aplicação dessa receita. Na Grécia como em Portugal, apesar da construção discursiva segundo a qual tudo corre mal em Atenas e tudo corre bem em Lisboa. Mas também em Espanha ou em Itália. A espiral recessiva que ameaça hoje toda a Europa é o maior alerta para as suas consequências económicas e políticas devastadoras. De algum modo, debater o crescimento já tinha deixado de ser uma "perversão" alimentada por uma atitude irresponsável da esquerda ou por uma "conspiração anglo-saxónica" envolvendo a grande imprensa britânica e americana e até alguns Prémios Nobel de duvidosa reputação.

A eleição de Hollande terá um enorme impacte sobre este debate. Porque a França é a França, por mais enfraquecida que esteja economicamente. Porque o novo Presidente foi eleito argumentando precisamente que tencionava questionar a estratégia europeia de resposta à crise. A grande diferença está em que a Alemanha, por mais que a chanceler faça discursos preventivos perante o Bundestag, não pode ignorar as posições da França nem pode isolar a França, a não ser que decida que a Europa já não lhe interessa e siga, ela própria, o seu caminho sozinha. Este é um cenário que ninguém sequer equacionava há dois anos, que hoje se equaciona, mas que felizmente ainda continua a ter um elevado grau de improbabilidade. Não é por acaso que a frase mais repetida nas análises da imprensa alemã nestes últimos dias inclui a palavra "isolamento".

2. Mas não é este o significado mais importante da eleição de Hollande, independentemente daquilo que vier a conseguir fazer.

Muita gente escreveu, depois do último domingo, que a política entrou pela porta dentro sem se fazer convidada, mudando radicalmente os termos da resolução desta crise europeia. Não é uma mera figura de retórica. O discurso artificial de Bruxelas sobre os programas de ajustamento dos países intervencionados ou dos países em maiores dificuldades ou ainda daqueles que vão indo mais ou menos, nunca soou tão a falso. Os desvios de décimas nas metas do défice ou as boas e más notas que Bruxelas se entretém a dar a este ou àquele governo nunca soaram tão absurdas. De repente, o discurso burocrático da Comissão (que não consegue fazer mais do que interpretar a vontade de quem manda) deixa de fazer qualquer sentido. As ameaças de Berlim a Atenas, antes "compreensíveis", tornam-se muito mais insuportáveis. A política entrou em cena para colocar em debate, como é o seu papel em democracia, alternativas razoáveis. E sobretudo para avisar que há uma alternativa ao "pensamento único" muito mais perigosa que os défices: a ascensão do nacionalismo. "As pessoas reagem contra o facto de os governos dependerem de factores alheios ao seu voto, dos mercados ou de Angela Merkel, o que provoca o nacionalismo exacerbado", disse há dias Felipe González. A democracia está a perder prestígio e esse é um enorme perigo.

O que há de novo em Hollande, independentemente de acharmos que as suas promessas eleitorais são boas ou más, é que ele ganhou as eleições dizendo que podia haver outra forma de fazer avançar a Europa. Desfez o mito da "inevitabilidade" da rendição a Berlim. "Hollande centrou boa parte da sua aposta política, não a prometer uma mudança interna, mas a exigir uma reorientação do quadro político europeu", escreve Thomas Klau, do European Council on Foreign Relations. "Foi um corte notável com as políticas nacionais a que estamos habituados." González, de novo, resumia a importância da sua eleição de uma forma bastante simples: "Ele pode dizer que não a Merkel." É preciso que alguém diga aos alemães que, apesar da força da sua economia, se continuarem a querer a Europa, mesmo que uma Europa um pouco mais alemã, têm de pagar por isso alguma coisa. Há uma troca a fazer. Um compromisso a estabelecer. Como sempre aconteceu. O novo Presidente da França falou para as outras capitais europeias. O eixo Paris-Berlim só é capaz de reflectir o interesse global dos europeus quando resulta de um compromisso equilibrado e não de uma rendição. E isso é ainda mais necessário perante o brutal enfraquecimento da Comissão Europeia, da sua cada vez maior distância do interesse comum que é suposto defender.

Hollande europeizou a política francesa. Merkel está a nacionalizar a política alemã.

3. Voltemos por um momento ao crescimento. Foi, até agora, uma palavra vazia de sentido porque em Berlim se entendia que ela tinha de ser vazia de sentido. Há um ano, muita gente colocou em cima da mesa os instrumentos que poderiam resolver a crise da dívida por outro caminho. De Jean-Claude Juncker ao próprio Durão Barroso, passando pelo SPD alemão, a ideia da mutualização parcial da dívida foi discutida. Depois, foi enterrada por vontade expressa da chanceler alemã. Mais: os mesmos que a defenderam elaboraram grandes teorias para justificar que, afinal, não era oportuna. Há um ano, toda a gente discutia o papel do BCE como credor de último recurso. A ideia caiu pelas mesmas razões. Hoje, Hollande diz com toda a tranquilidade que a Alemanha não pode querer utilizar ao mesmo tempo dois "travões": impedir o BCE de emprestar aos estados e impedir a mutualização parcial da dívida ou o recurso à emissão de dívida europeia para financiar algum crescimento. Há outro debate sobre o crescimento que não tem necessariamente a ver com o aumento dos défices públicos. Basta provar que há uma tradução real da retórica oficial sobre o "governo económico". Se temos um tratado orçamental que nos obriga à disciplina financeira dos estados, então temos de ter também um governo económico que obrigue os países excedentários a desempenhar o seu papel de motores do crescimento. Até agora, também não se podia falar nisto porque contrariava o pensamento único. Hoje, é a própria Alemanha que admite que pode animar o consumo interno através do aumento do custo do trabalho (enquanto os países do Sul o reduzem) e de alguma inflação. Finalmente.

Começamos de novo a falar "europeu" em vez de alemão. Talvez por causa do choque grego. De certeza por causa da eleição de Hollande.

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