O Senhor dos Desamparados

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1. O semanário Agência Ecclesia de 2012.06.12 publicou um dossier multifacetado sobre a religiosidade popular, um bom instrumento para repensar e reorientar a pastoral das festas de Verão. A diversidade de experiências que a religiosidade popular celebra e os universos simbólicos que a configuram não devem ser confundidos com peregrinações, romarias e procissões, arraiais, foguetes e bailaricos, sardinhadas e comezainas bem regadas, nem com as devoções mais estranhas, associadas aos costumes mais insólitos da crendice. Mas, então, porque terá o "povo" escolhido este tipo de manifestações para festejar Santo António, um ilustrado pregador e teólogo do séc. XIII, S. João Baptista, o modelo da austeridade mais radical e S. Pedro, a figura mais instável e imatura dos Apóstolos da Igreja nascente? Donde terá vindo esta tendência para dar sempre a volta às figuras oficiais da santidade e torná-las "santos populares"?

Conheci os programas e os processos da chamada "cristianização das festas" - nos anos 40 e 50 do século passado - e as suas desastrosas consequências em algumas zonas do Alto Minho. Sou testemunha das medidas insensatas e das pregações aberrantes que as procuravam justificar. Hoje, já se tomou evidente que esses programas foram concebidos e executados sem inteligência da significação antropológica da religiosidade popular e das exigências da inculturação do Evangelho. O resultado não foi a transformação da mente, do coração e do conjunto da vida das populações, isto é, um processo de conversão permanente, sem a qual não há verdadeiro cristianismo. Foi a consumada separação entre a liturgia canónica, a cultura popular e o divertimento. Ao confundir a sensualidade mais sadia com os " pecados da carne", desencarnaram a fé católica. Ao separarem a celebração litúrgica da religiosidade popular e esta das suas expressões lúdicas da vida, contribuíram para a secularização da sociedade, que agora lamentam. Esta situação não será alterada apenas com exibições de algumas beatices requentadas.

Há muitas manifestações religiosas, de cariz popular, que parecem fazer a apologia da dor, do sofrimento, mas podem não ser mais do que a expressão realista da dureza da vida. As festas dos santos populares procuram, pelo contrário, o que a vida deveria ser: uma alegria. Deste modo, testemunham a realidade profunda do Novo Testamento: "Isto vos escrevemos para que a nossa alegria seja completa." (1 Jo 1,4 e II). Jesus Cristo foi muito claro: "Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância." (Jo 10,10).

2. Seria ingenuidade imaginar o povo português como uma entidade abstracta, intemporal (1) e com uma religiosidade popular sem história. D. Manuel Clemente - servindo-se da recente análise de Rui Ramos sobre Portugal Contemporâneo -, formulou e desenvolveu oito itens de mudança social e cultural, como desafios à "nova evangelização", que passo a enumerar: a popularização cultural; o alargamento social do Estado; as novas valorizações; as variações demográficas; a sensibilidade política católica; o regresso à Europa; o distanciamento do "além" e o retraimento do matrimónio e da geração.

Estas são, apesar de tudo, mudanças menores em relação a outras bem mais radicais e de carácter universal. Desde o começo dos anos 80, vivemos quatro revoluções ao mesmo tempo: uma revolução económica, com a mundialização; uma revolução numérica e cibernética que deu à luz um quase-planeta, um sexto continente; uma revolução genética, que transforma os fundamentos da humanidade, as nossas relações com a vida, com a procriação e com a genealogia; uma revolução ecológica, com a tomada de consciência de que não nos podemos desenvolver como se fazia desde há milénios. Com tudo isto, já não sabemos para que santo nos voltar.

3. Guimarães, de quintana de "viamaranes", passou a Património da Humanidade e Capital Europeia da Cultura 2012. Sente-se a alegria da população com as transformações da sua cidade e com a admiração de quem a visita. É hoje uma festa de acontecimentos culturais e religiosos, de expressão erudita e popular.

Encontrei-me, inesperadamente, diante de um quadro insólito. Encostado a um muro, com um pequeno tapete de flores no chão e uns curiosos dizeres, inscritos na pedra que o sustentava - ESTA DEVASÃO MANDARA FAZER OS MORADORES DESTA RUA ANNO 1772 -, estava, afinal, o Oratório do Senhor dos Desamparados. Enquanto o admirava, fui envolvido numa arruada com músicas e danças de trovadores, que celebrava a festa dos trezentos anos desta devoção de rua, diária e ininterrupta. Este oratório não foi, apenas, obra dos seus antigos moradores. Ao longo dos tempos, cresceu a convicção de que havia sempre alguém que tinha os olhos postos nos desamparados, o mesmo que conserva este costume, desde há dois mil anos.

Esta invocação significa a própria essência da religião. Precisamos de contar para os olhos de alguém, na vida e na morte. A chamada Cimeira do Rio +20 diz-nos que precisamos que o Cristo do Corcovado se transforme no Senhor de todos os desamparados do mundo e desta Terra ameaçada.

1) Cf. José Neves (coord.) Como Se Faz Um Povo, Tinta da China, 2010.

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