O nome e a coisa

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Leitor critica o uso da expressão "esquerda radical" para classificar a segunda força política mais votada nas eleições legislativas gregas

Oacrónimo Syriza, que designa a coligação de forças de esquerda que surpreendeu muitos analistas ao afirmar-se como segunda força política nas eleições legislativas de domingo passado na Grécia, está para ficar nas páginas de noticiário internacional. Ainda há pouco quase desconhecida fora do seu país, esta coligação será certamente um actor de primeiro plano na evolução próxima da crise grega, qualquer que ela seja. Uma sondagem conhecida nos últimos dias dava-a até como possível vencedora em caso de uma nova chamada às urnas dos eleitores gregos a curto prazo. A sua caracterização - a sua história, ideologia e programa, e o seu posicionamento no xadrez político grego e europeu - tornou-se um tópico relevante e sensível para quem acompanha a actualidade internacional.

Exemplo disso será uma reclamação do leitor Fernando Pereira, que critica (chama-lhe mesmo "pouco honesta") a forma como esta força política é referida no PÚBLICO. "Porquê", pergunta, "ocultar sempre o nome do partido e substituí-lo pelo nome genérico de "esquerda radical"?". Na sua perspectiva, "existe aqui uma tentativa de desqualificação do partido, remetendo-o para o universo da "radicalidade" que tanto medo mete hoje aos ideólogos do centro".

Opiniões à parte, haverá aqui alguns equívocos a clarificar. Primeiro, o PÚBLICO não ocultou o nome da coligação (a Syriza é uma aliança entre partidos, não um partido singular). Segundo, o nome que essa aliança escolheu para si própria foi precisamente o de Coligação da Esquerda Radical (é o início de cada uma dessas palavras em grego que forma o acrónimo). Terceiro, o próprio partido dominante da coligação, a que pertence o seu líder, Alexis Tsipras, e que nasceu ele próprio de uma aliança entre diversas forças e movimentos, parece rever-se sem problemas na designação genérica de "esquerda radical, renovadora, democrática e socialista".

É claro que o termo "radical" se presta a leituras diferenciadas. Os próprios dicionários o atestam: mesmo enquanto conceito político, o seu significado pode variar entre noções como a de um reformismo social profundo ou a de colocação num extremo do leque político. Como quase todas as designações político-ideológicas, evoluiu, historicamente e consoante as latitudes, para representar ideias políticas diferentes, e posições variáveis no quadro convencional do binómio esquerda-direita. Os herdeiros do nome do radicalismo francês oitocentista, situado então na extrema-esquerda do republicanismo e do liberalismo, antes de esse lugar ser ocupado por socialistas e depois por comunistas, dividem-se hoje entre o centro-direita e o centro-esquerda do tabuleiro político. Partidos autodesignados radicais há-os hoje para todos os gostos, da Suíça à Argentina, influenciados em doses diferentes por correntes liberais e socialistas e polarizando-se em torno de temáticas sociais diversas. E que pouco têm a ver, por exemplo, com a matriz libertária dos radicais italianos das últimas décadas, apóstolos de um reformismo forte que valoriza principalmente os direitos humanos e civis e o que hoje se chamam "causas fracturantes".

O que poderá considerar-se comum a todos os que se definem a si próprios como radicais é que se apresentam (ou se auto-representaram originalmente) como defensores mais firmes e consequentes de valores ideológicos que supostamente partilham com outros actores políticos. É-se radical em relação a outros. A distinção corrente entre "moderados" e "radicais" faz nesse plano todo o sentido, qualquer que seja o campo político em causa. A Syriza, por exemplo, ver-se-á e será vista como radical em relação ao socialismo ou social-democracia representado na Grécia pelo PASOK.

O caso grego é apenas um exemplo actual das rearrumações partidárias em curso na Europa nas últimas décadas. A aliança liderada por Tsipras representa uma das novas esquerdas que se reconfiguram em torno de temáticas e clivagens diferentes das que caracterizavam as esquerdas tradicionais, distanciando-se destas em certos valores e convicções, mas mantendo com elas laços de proximidade nos planos da ideologia, do imaginário e da tradição.

O que sabemos já, afinal, de mais relevante sobre a Syriza? No plano histórico, que resulta da confluência de socialistas de esquerda, de dissidentes reformistas da área comunista ortodoxa, de ecologistas, de activistas de movimentos sociais, de sobreviventes da velha extrema-esquerda trotskysta e maoísta. E que dessa confluência surgiu um novo tipo de entidade política. Compreendem-se por isso as comparações que têm sido feitas com o Bloco de Esquerda português, embora não devam esquecer-se as diferenças de génese e circunstância, e nomeadamente o menor peso relativo, na fundação da aliança grega, de grupos oriundos do esquerdismo marxista-leninista.

Sabemos que se proclamam anticapitalistas e defensores da via parlamentar. Que o seu compromisso com o processo de integração europeia é ou era suficientemente ambíguo para ter justificado uma importante cisão da ala mais europeísta, que deu origem a uma nova formação, a Esquerda Democrática, que obteve também uma representação parlamentar significativa. Que, no plano da política imediata, se bate pela difícil conciliação entre o apoio à permanência do país na zona euro e a defesa da ruptura com a política de austeridade, da renegociação da dívida grega e da denúncia do plano de resgate acordado com a UE e o FMI, objectivos que partilha com a direita nacionalista e a extrema-direita.

Vêm estas considerações, também elas sujeitas às flutuações semânticas próprias de alguns dos conceitos utilizados - mas que recorrem a terminologias correntes e bastante consensuais na imprensa independente - para recordar o contexto em que deve ser considerada a crítica de Fernando Pereira. Na minha opinião, o leitor não tem razão em ver "desqualificação" onde há uma qualificação perfeitamente aceitável. Face ao que é e ao que defende, a Syriza pertence de facto ao universo da esquerda radical europeia, mesmo que não deva ser confundida com outras espécies de radicalismos.

Acresce que, em geral, deve ser respeitado nas notícias o nome que as forças políticas escolhem para si próprias. Caso contrário, por que escreveríamos, por exemplo, sociais-democratas para identificar os membros do principal partido de governo português, quando essa designação, própria de uma tradição de esquerda, é uma anomalia histórica com motivos conhecidos, e o PSD integra, com naturalidade, o bloco europeu dos partidos conservadores, de direita e centro-direita?

A haver alterações justificáveis no modo como o PÚBLICO designa o movimento liderado por Alexis Tsipras, seriam, na minha opinião, a de grafar o nome com maiúsculas (Esquerda Radical, porque é o seu nome e porque esta formação não esgota o universo da esquerda radical na Grécia), e de o declinar no feminino ("a" Syriza), por se tratar de uma entidade do género feminino, como a União Cristã-Democrata alemã, ou a sua homónima CDU portuguesa.

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