Deve o Estado ser responsável pelos atrasos na Justiça?

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A construção da Europa - ou das várias Europas - é um trabalho sem fim, cheio de avanços e recuos, sendo certo que, às vezes, é difícil sabermos se determinadas medidas configuram progressos ou retrocessos. Se neste momento as questões económicas e financeiras são o centro do turbilhão que assola a Europa e cujo resultado, mesmo a curto prazo, ninguém poderá antever com segurança, já no campo dos direitos humanos os progressos da construção europeia são inequívocos.

Claro que, em muitos aspectos, é o princípio da "água mole em pedra dura" que vai actuando, já as soberanias nacionais são realidades incontornáveis e as resistências são muito variadas, por vezes verdadeiras muralhas de aço. Certo é que um dos organismos europeus que mais têm contribuído para a melhoria dos direitos humanos e da justiça no nosso continente é o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH).

A sua actuação é particularmente relevante na construção de uma justiça europeia porque aplica uma lei europeia - a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) - e porque permite que qualquer cidadão individualmente se queixe da violação desses seus direitos directamente no TEDH.

No passado dia 31 de Maio, o TEDH, mais uma vez, declarou que Portugal tinha violado o europeu direito a termos justiça em tempo razoável, bem como o direito a termos internamente um recurso efectivo contra essa mesma violação. Em causa estavam queixas apresentadas pela firma Martins & Vieira, Lda., representada pelo advogado Jorge Jesus Ferreira Alves, respeitantes a atrasos no andamento de processos no nossos país. Um deles, para se ter uma ideia do problema, respeitava a um crédito dessa mesma firma, reclamado contra uma empresa que veio a falir: a acção foi proposta em 23 de Maio de 1993 e terminou em 24 de Outubro de 2008, data em que a empresa queixosa foi notificada da graduação dos créditos na falência e em que ficou a saber, irreversivelmente, que não ia receber nada. 15 anos, 5 meses e 3 dias a percorrer as três instâncias judiciais: tribunal de 1.ª instância, tribunal da Relação e Supremo Tribunal de Justiça.

Mas, para além de reconhecer que Portugal violara essa sua obrigação de prestar aos seus cidadãos o serviço de justiça em tempo razoável em qualquer dos processos em causa, o TEDH declarou também que Portugal continua a não ter um meio eficaz de os cidadãos reagirem contra esses atrasos e de serem compensados pelos mesmos.

Na verdade, o nosso país, ou melhor, os nossos juízes dos tribunais administrativos continuam a não aceitar que o Estado é responsável pelos atrasos na justiça e deve indemnizar os cidadãos por esses mesmos atrasos. Embora a lei estabeleça a responsabilidade do Estado pela prática de factos ilícitos, a verdade é que os nossos tribunais administrativos continuam a entender que os atrasos na Justiça não são ilegais, não sendo o Estado responsável pelos mesmos.

Saliente-se que na avaliação da "excessiva duração" de um processo, o TEDH tem em conta as circunstâncias concretas do caso, nomeadamente a sua complexidade, o comportamento das partes e das instâncias oficiais envolvidas, bem como a questão em discussão, não aplicando qualquer critério numérico do tipo cada processo deve durar no máximo X anos. Mas os tribunais administrativos portugueses, pura e simplesmente, não "querem" reconhecer que as autoridades nacionais, normalmente os próprios tribunais, falharam nas suas obrigações, numa espécie de corporativismo absolutamente deslocado e atávico. E conseguem sempre descobrir razões para não indemnizar. Por exemplo, que não houve prejuízos: como se estar anos à espera de uma decisão judicial não fosse, em si mesmo, um prejuízo...

A firma em questão tinha recorrido aos tribunais administrativos para ser indemnizada pelos atrasos nos processos judiciais e nada conseguiu, sendo certo que um dos processos que intentara contra o Estado ainda se arrastava pelos tribunais administrativos aquando da decisão do TEDH e um outro já tinha decidido definitivamente que nada havia a indemnizar pelo Tribunal Central Administrativo do Norte.

É pena que esta mentalidade jurídico-corporativa continue tão disseminada pelos nossos juízes administrativos. Passamos por esta vergonha europeia de não só termos processos excessivamente atrasados como de não termos meios de reagir eficazmente a esses atrasos. O TEDH, para além de declarar a violação por Portugal desses direitos, condenou o nosso país a indemnizar a empresa em causa, a título de danos morais, na quantia de € 16.400 e em € 2000 para as despesas do processo.

P.S.: O abandono do PÚBLICO pela jornalista Maria José Oliveira, independentemente das razões para a sua decisão, para além de ser um prejuízo para o jornal, é uma miserável vitória do inefável ministro Relvas.

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