Dar a volta à vida

Os gregos vão obedecer ao conselho da imprensa financeira alemã e darão a maioria ao centro-direita

1.O Governo parece ter decidido "dar a volta aos acontecimentos", tanto no caso Relvas como no caso Borges. Ou seja, os spin doctors foram chamados a intervir para tomar conta destes casos. E fizeram-no com aparente sucesso. Deixou de se falar de Relvas, que passou a praticar uma combinação de recolhimento com aparições públicas em obras pias. O mesmo se passou com Borges. Borges tem um fraco por declarações espontâneas, fáceis de transformar em mordeduras sonoras negativas, adoradas pelos media. Por mais que agora se esforce por convencer-nos de ter sido mal interpretado, nunca tendo manifestado regozijo pelo desemprego, a verdade é que reduções de encargos no custo do trabalho foram apresentadas como o principal antídoto à fraca competitividade da nossa economia. Ainda por cima saudando a rapidez da transição e a elevada paciência das vítimas. Neste caso, a "volta" foi dada com várias entrevistas e uma bem preparada aparição no programa Prós e Contras, em tom coloquial e simpático, com opositores bem-educados e aqui e ali tolerantes. Na verdade, Borges foi uma das nossas glórias de exportação de talentos, reitor do INSEAD, juntando boa reputação académica com influente presença em lugares de topo de potentes e omnipresentes empresas financeiras internacionais. Algumas das polémicas posições de Borges são conhecidas: a recomendação de privatização total da Caixa (anos depois, muitos estão de acordo, ainda que por razões diferentes); a declaração, salvo erro em Setembro de 2008, de que a crise seria passageira; a simpatia declarada pelos imaginativos e venenosos novos produtos financeiros que tanto contribuíram para a derrocada da Banca e a consequente derrocada financeira dos países que honestamente se comprometeram a salvá-la; e, mais recentemente, as declarações de louvor ao aperto financeiro que estrangula os salários e o poder de compra das classes média e baixa. Tudo isto, o seu passado reconhecido e as suas gaffes espontâneas não podem fazer esquecer a política. Borges é um verdadeiro ministro sem pasta, facilitador do tão necessário investimento estrangeiro, porventura o mais influente conselheiro do primeiro-ministro. Não sendo um comum dos mortais, exige-se-lhe mais e sobretudo que não reincida: não há uma segunda ocasião para se deixar uma primeira boa impressão.

Quanto a Relvas, agradece-se silêncio, sobretudo ao telefone. Ao menos pouparia ao professor Marcelo o dispêndio de munição para manter à distância um governo que pode comprometer, em calendário adverso, as suas confessadas ambições presidenciais. Por um instante, imaginemos que estes "incidentes" se teriam passado no ciclo político anterior. Como teriam sido tratados os seus autores? Mais uma distinção entre a direita e a esquerda: a direita pode fazer o que quiser, a esquerda tem que ter o comportamento dos estóicos.

2.Uma outra vertente da comunicação política do Governo consiste em transformar medíocres resultados nas mais ridentes vitórias. Estava o Governo ufano dos "seus" resultados económicos, abençoado pela benévola troika, quando desabam as previsões da OCDE: revisão em baixa dos indicadores avançados de Portugal, ou seja, um novo recuo de 0,2% a confirmar a permanência da recessão, negando os indicadores de há um mês que apontavam para uma recuperação da economia no final deste ano. Desta vez não foi apenas o Governo que falou antes do tempo. Tudo isto não passaria de um errático acidente estatístico, se as exportações para a Europa não viessem a revelar a redução da procura nos nossos parceiros comunitários, reduzindo o crescimento exportador de dois dígitos nos primeiros dois meses deste ano, para um valor de 9% em Março, ainda muito bom, e menos de 3% em Abril, em tendência sombria. Felizmente o crescimento das exportações para fora da Europa mantém-se elevado, mas o seu ainda reduzido peso relativo no total exportado não chega como compensação. Ninguém ficou satisfeito. Mas o responsável pela agência para o comércio externo, convencido de que o optimismo torna as nossas exportações mais competitivas, comunicou às redacções dos media que as empresas nacionais exportadoras "estão a resistir ao pessimismo e são a verdadeira locomotiva da economia". Confesso que, embora concorde com o conteúdo, apesar de não acertar com a ocasião, este estilo de comunicação me surpreende pelo tom de campanário de um alto funcionário, ao que creio sem estatuto de membro do governo. Claro que os funcionários podem e devem ter opinião, desde que prudente e recatada, deixando ao governo o foguetório político. E por uma razão bem simples: todos precisamos de acreditar neles e na sua competência técnica, baseada em experiência, boa informação e independência de julgamento. Ora se um alto funcionário começa a lançar louvores e a declamar cantatas, até o mais ignorante cidadão passa a descrer. Da descrença à proposta de uma nova agência parlamentar independente vai apenas um pequeno passo.

3.O Mundo está bem mais preocupante que a nossa ditosa pátria. No momento em que escrevo não é possível antecipar os resultados das eleições na Grécia. O tom geral de drama que tem sido usado pela imprensa económica europeia para consciencializar ou atemorizar o eleitor grego poderá não ter inteira correspondência nas manobras de corredor. Uma vitória do Syriza, vista há quinze dias como uma hecatombe, começou a ser abertamente admitida e a gerar planos de contingência que passariam por um hábil jogo de cintura da Alemanha, cedendo aqui e ali, para que a ruptura do euro não ocorra. Ela seria desastrosa para a Alemanha e França, e de consequências imprevisíveis para as grandes vítimas do momento, a Espanha e a Itália. Se dessa atitude resultasse um abrandamento das condições do ajustamento e uma chuva de boas medidas no Conselho desta semana, incluindo as obrigações de estabilidade, com esse ou outro nome, que reponham o cargueiro da economia a reflutuar (na tão sugestiva como dramática imagem da capa da Economist da semana passada) talvez ainda todos tivéssemos que agradecer ao jovem Tsipras a salvação do euro. Homem ignorante de economia, como revela no artigo de opinião no Financial Times, mas mítico salvador do mundo financeiro, com base apenas no senso comum. Seria justo, então, vir a receber o Nobel da Economia. Merecê-lo-ia, por ter dado a volta à nossa vida.

4.Mas não, nada disso vai acontecer. Os gregos vão obedecer ao invasivo conselho da imprensa financeira alemã e darão a maioria ao centro-direita. O que significa, em vez do espeto, a caçoila: a Alemanha irá continuar a propor o financiamento fatia a fatia, através do Banco Central Europeu, sem conseguir deter a crise, sendo a Espanha a próxima vítima. Seguir-se-á a Itália, depois a Bélgica, a seguir a França e talvez a própria Alemanha. Assim terminará a bela aventura da zona euro.

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