Convém lembrar que o teatro vem da Grécia...

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Faz precisamente hoje um ano que o PÚBLICO distribuiu com a sua edição o livro Do Outro Lado da Máscara - Ensaios Teatrais Politicamente Incorrectos, que eu escrevi e a Letras & Coisas publicou. Tudo quanto ali defendi como um modelo (à falta de nenhum) programático para uma (re)organização da profissão, do papel social do artista, das questões do ensino, da certificação profissional, dos financiamentos, do papel dos teatros nacionais, das redes de teatros e cineteatros, da descentralização e o mais: mantenho inalterável. Há um ano era uma assimptota que poderia - com outros e diferentes contributos - ajudar a que um dia no Estado português um pensamento estratégico se realizasse em praxis com princípio, meio e fim; hoje é uma ucronia. Pelo menos para a próxima década, tenha ela o desfecho que tiver, na certeza de que no agora ele também é impossível e que este agora, felizmente, está por um fio.

Defendi também, depois nas páginas deste mesmo jornal, face aos cortes e contenção orçamentais previsíveis, na minha absoluta independência e consciência, uma Secretaria de Estado da Cultura directamente dependente do primeiro-ministro a um ministério. Hoje, perante o quadro do ridículo orçamento de 0,1% e, pior, o confrangedor silêncio da tutela mais as declarações parlamentares (ou "para lamentar") dos partidos que sustentam este mesmo Governo, nem uma secretaria de Estado vale a pena! O Governo deve assumir que não quer saber da cultura, não lhe vê vantagem (talvez veja mesmo desvantagem), e em vez de artifícios manhosos e hipócritas, o melhor é mesmo acabar com a tutela. Bastará uma direcção--geral do património edificado, dependente de um funcionário do Ministério das Finanças, e um "fundo de diversões", em concessão privada tipo feira popular.

Consequentemente, em coerência, espera-se que acabe com todo o tipo do que chama "subsidiodependência" (na New Deal americana chamaram-lhe investimento, incluindo na própria Broadway); mas deve começar por acabar com o eufemismo da "recapitalização" - e que são pelo menos (ao certo ninguém consegue saber) 1200 vezes mais do que com toda a cultura junta - os ditos (que o não são porque não integram a lei da oferta e da procura, mas dependem do Estado) mercados financeiros, na Bíblia chamados agiotagem.

Assim, apesar do esforço e da coragem de muitos artistas, o teatro português, tal como o seu povo, exangue, padece de lepra e o seu corpo vai caindo aos bocados: os chamados "grupos históricos" vão sendo estrangulados, a "descentralização" idem, a dispersão estúpida de verbas vai dar lugar ao deserto, os projectos emergentes serão submersos; e as únicas medidas que se conhecem no teatro são cortes de 38% e o aumento do IVA dos bilhetes.

É certo (e fartei-me de o dizer) que no seio do próprio teatro há práticas que determina(ra)m responsabilidades numa postura de costas voltadas para o público e "exageros" (como pedir subsídios para as PRIMEIRAS encenações, vá-se lá saber com que critérios possíveis de avaliação e selecção!). Isso vai explicar muito do porquê da absoluta indiferença da opinião pública face ao que se adivinha. Mas não justifica o crime liquidacionista do teatro e demais património cultural imaterial.

Creio que a mochila a transportar para o início de uma longa jornada para a noite é a da reaproximação do teatro da sua própria génese, retomando a pessoa como pessoa e o teatro como expressão de pessoas: o nome veio de théatron (o lugar do público) e não de skène (o lugar do actor).

Não com medições de bilheteiras (isso fica para os que em vez de chá beberam Coca-Cola em miúdos e o gás subiu--lhes à cabeça!), mas valorizando a fruição alargada dos bens artísticos, propulsores e geradores de massa crítica. Não promovendo eventos de consumo mediático, mas consolidando e criando projectos estruturados e estruturantes, a partir de novos paradigmas. Não para aceitar o incumprimento (mais um!) do Governo relativo à Constituição (ao abrigo do artigo 73.º), mas para fazer frente a uma situação generalizadamente degradada, degradante e insuportável. Não em particular pelo teatro ou sequer a cultura no seu todo, mas por tudo o que se passa de empobrecimento material e espiritual em Portugal.

O lugar do teatro é na urbe, com a urbe, pela urbe. Um lugar que só pode ser como o dos povos que queiram sobreviver com dignidade e soberania: resilientes, resistentes, proactivos. Da tragédia grega veio o teatro europeu, esperemos que uma nova Europa venha outra vez da Grécia: das suas ruas e praças.

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