Conhecer ou condenar o colonialismo português e as guerras da descolonização?

Foto

É de saudar o interesse do PÚBLICO por um tema histórico e o destaque que lhe deu com várias páginas dedicadas ao tema da guerra em Angola em 1961 sob o título "Relatório militar revela que tropas portuguesas participaram em decapitações". A esse propósito foi ainda mencionado o mais importante massacre conhecido por tropas portuguesas nestas campanhas, em Wiriyamu, Moçambique, há 40 anos atrás, em Dezembro de 1972. Parece-me, no entanto, de sublinhar e aclarar alguns pontos importantes quanto ao estudo e ao estado destas questões, aliás, em parte levantados pelos autores consultados e pelos leitores nos comentários ao artigo referido. Tocarei cinco pontos em cinco parágrafos: primeiro, o lugar marginal do período colonial mais recente na investigação histórica; segundo, as dificuldades em fazer a ligação entre a história e a dimensão militar; terceiro, a questão complexa da violência nos impérios e a indispensável e escassa abordagem comparativa com outros países. Quarto, a imagem do império/ultramar na memória nacional. Quinto, o papel do historiador nestes debates e a questão da ética profissional.

Sempre se fez muita história dos Descobrimentos, embora durante demasiado tempo de forma muito apologética, muito elogiosa. Felizmente este tem sido também um dos campos mais dinâmicos da renovação da história em Portugal no pós-25 de Abril. Porém, muito mais atenção e muitos mais recursos têm sido dedicados ao estudo dos períodos mais remotos, às "idades de ouro" amplamente comemoradas das Descobertas e da construção do império no Oriente e no Brasil, do que ao período mais recente do que podemos designar por "Terceiro Império" português em África. É indispensável que este desequilíbrio seja corrigido, se se quiser que o período mais recente seja melhor conhecido e esteja presente de forma mais rigorosa na memória coletiva. Este é, além disso, um campo em que Portugal tem um nicho de conhecimento valioso, nomeadamente para o estudo de partes importantes de África que não deve ser perdido. Mas para se conhecer é fundamental investir no cuidar da documentação muito vasta deste período - não me espanta que tenha havido documentação delicada a ser queimada, o que é espantoso é que tanta ainda esteja por tratar e publicar. Na Grã-Bretanha investiu-se fortemente nisso, e, recentemente, quando foram descobertas dezenas de milhares de ficheiros sobre a repressão colonial tardia, logo foi estabelecido um programa de inventariação e estudo. Que fique claro que não estou a pedir mais fundos neste momento de crise, apenas uma mais cuidada distribuição dos que existem - muitos deles europeus - em função da importância destes temas.

No campo dos estudos dos impérios - nomeadamente da sua expansão, defesa e queda - a história militar e em sentido mais amplo a história dos conflitos e da violência é uma dimensão muito importante. Há já uma quantidade apreciável de obras produzidas sobre história militar destes conflitos da descolonização, sobretudo saída das mãos de militares ou de especialistas estrangeiros. E alguma coisa sobre outras formas de violência mais ou menos institucionalizados por parte de historiadores e outros cientistas sociais. Isso, em si mesmo, não teria nada de errado, não fosse o facto de, por um lado, muitos militares fazerem uma análise sobretudo na ótica militar operacional e tática, ignorando outras vertentes (com exceções, claro); e, por outro, muitos historiadores do colonialismo ignorarem totalmente essa dimensão militar nas suas análises. É esta ignorância mútua que é problemática.

Em terceiro lugar, é fundamental reconhecer que os impérios não foram uma invenção portuguesa, nem europeia. Portugal no período da sua fundação combateu contra a presença de impérios muçulmanos africanos na Península. Os Descobrimentos foram em parte uma resposta a isso. O passado está cheio de impérios da mais variada proveniência. Havia impérios africanos antes da chegada dos europeus - um dos mais antigos é o Egipto - e eles continuaram a existir e a expandir-se bem depois da chegada dos portugueses e outros europeus (veja-se o Império Vátua em parte de Moçambique, ou o Império Etíope). Estes impérios africanos recorriam à guerra para se expandirem e, quando lhes parecia necessário, à repressão sangrenta para se manterem. E, se é uma verdade que por definição nenhum império foi democrático, mesmo quando o centro imperial o era - assentando numa relação hierárquica entre uma metrópole centro do poder e uma periferia subordinada -, também é certo que nenhum império conseguiu durar apenas com base na violência e na repressão. Se se deve estudar melhor a violência nos impérios - do ponto da repressão de cima, mas também da resistência de baixo -, isso deve ser feito de forma comparativa. Fazer de um qualquer império uma espécie de mal absoluto e permanente é uma posição política ou até moral, eventualmente legítima, mas que não pode servir de base a uma análise histórica rigorosa, desde logo porque é anacrónica. Durante boa parte da história da humanidade construir um império era uma coisa normal, gloriosa até e moralmente defensável.

Especificamente quanto às guerras da descolonização, o documento citado de 1961 é interessante e será chocante para um leitor atual. Documenta com elementos novos o facto conhecido do elevado grau de violência da resposta inicial das escassas forças portugueses ao massacre de brancos e negros de todas as idades e condições que não fossem bakongos pela revolta da UPA no Norte de Angola em Março de 1961. O documento é valioso, sobretudo por documentar que esta violência no que poderíamos chamar a "batalha por Luanda e arredores" que não podia cair, em 1961, não foi simplesmente espontânea e não visou apenas guerrilheiros mortos na sequência de ações de combate, mas correspondeu, pelo menos nalguns casos, a ordens superiores - ainda que de nível baixo neste caso (capitão), sendo que a destruição do documento parece mostrar que não contava com o apoio do comando militar superior, embora daqui também não tenha resultado em qualquer punição. É algo a estudar mais e melhor. Mas, por exemplo, no caso da campanha da França na Argélia entre 1954-1962, pudemos documentar, apesar das dificuldades em localizar fontes deste tipo, o uso sistemático da tortura e execuções sumárias, quer de retaliação a massacres iniciais da guerrilha, quer na chamada "batalha de Argel" em 1957, que foram expressamente aceites pelos comandos superiores e tacitamente pelos responsáveis políticos, e até recomendadas em orientações operacionais do comando geral como exemplo para o resto do território argelino. Em Portugal, o desenvolvimento de orientações específicas para lidar com insurreições ainda estava a dar então os primeiros passos - o manual com linhas gerais de orientação para o Exército na guerra subversiva só surgiria em 1963, e alguns documentos preparatórios só tinham realmente influenciado a fundo o treino de poucas unidades de caçadores especiais. As demais foram sendo treinadas e adaptadas, na medida do possível e muitas vezes à medida que iam sendo usadas. O que espantou observadores estrangeiros, inicialmente muito críticos deste ciclo de terror inicial, como o cônsul britânico em Luanda naquela época, foi a rapidez com que, numa questão de meses, lhe pareceu que os militares portugueses tinham passado a adotar predominantemente pacificação pela captação e controlo das populações, sem que isto signifique que o elemento de medo e coerção tenha desaparecido.

Já o massacre de Wiriyamu de Dezembro de 1972 foi revelador de um outro tipo de problemas - uma intensificação da guerra em Moçambique, quer por iniciativa do novo comandante Kaúlza de Arriaga, quer por iniciativa da Frelimo. Esta última era cada vez mais eficaz, mais para sul, em zonas mais povoadas e com mais colonos brancos. Esse facto levou à crescente utilização de forças especiais em raides ofensivos, e a uma tentativa frequentemente falhada por razões várias de levar a população da zona de Tete a concentrar-se em grande aldeamentos controlados pelos portugueses.

Em suma, há o risco de que se passe diretamente de um mito na memória coletiva portuguesa de guerras benévolas e uma visão idílica da captação de populações para um outro mito de um reino de terror indiscriminado e permanente durante todo o período colonial. Talvez o lado mais paradoxal desta espécie de inversão do fardo do homem branco e da missão civilizadora seja tornar completamente irrelevante o outro lado, negar aos africanos nacionalistas qualquer protagonismo significativo no conflito e na sua evolução. Numa guerra há pelo menos dois lados - e no caso de Angola até havia vários grupos nacionalistas armados com posturas diferentes - a UPA/FNLA foi fortemente marcado por um tribalismo racista que, aliás, tornou impossível a unificação dos nacionalistas angolanos. Tudo o que se escreva que possa ser confundido com tornar os portugueses de hoje coletivamente culpados de uma guerra com várias décadas parece-me uma opção política que só pode dificultar uma análise histórica rigorosa. Que houve crimes de guerra nas guerras da descolonização parece inegável e o contrário é que seria estranho. Há que estudar cuidadosamente a sua escala e evolução, de um lado e do outro. Eles não se anulam, e é legítimo a quem quiser fazer os juízos políticos e morais que entender sobre o assunto. Mas a preocupação específica do historiador deve ser perceber o que se passou e, tanto quanto possível, esclarecer as motivações dos vários atores da época, em função do seu contexto, dos seus valores, dos seus objetivos. Fazer das guerras e da violência a única realidade importante, mesmo no período a partir de 1961, seria, no entanto, um exagero. Não se trata com isto de defender o Império Português, mas de o perceber melhor na sua complexidade, sem esquecer a violência mas também o resto, sem ignorar o papel do Estado Português e das suas forças, mas também sem ignorar o papel cada vez mais importante dos atores locais. Tratar de conhecer melhor antes de condenar seria a minha resposta à pergunta inicial.

Sugerir correcção