Bodo aos pobres

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A cadeia de supermercados "Pingo Doce" resolveu fazer, como eles dizem, uma "campanha promocional" no 1.º de Maio. Nada que não seja absolutamente legal, ou até sacrílego mesmo para o espírito dos devotos de esquerda. O mito "solidariedade operária" foi desaparecendo pouco a pouco depois da II Grande Guerra e hoje não passa de uma vaga reverência a um mundo perdido. Que o "Pingo Doce" tenha escolhido a oportunidade para aparecer de surpresa na televisão e nos jornais só recomenda a eficiência da sua gente e seria hipócrita pretender o contrário. Só o Estado e um ou outro velho excêntrico (que, de resto, ajuda a animar a paisagem) continuam a levar a sério os feriados do antigo e do novo regime, como se ainda pesassem na degradada vida portuguesa.

Houve, apesar disso, meia dúzia de protestos sem consequência mas com fervor e meia dúzia de extravagantes teorias de sociólogos no desemprego. Dos sociólogos não vale a pena dizer muito, porque lhes pagam precisamente para fingir que explicam a evidência num calão consensual e sedativo e, se possível, sem sentido. Os protestos, sobretudo os protestos de carácter político ou próximo disso, merecem um comentário. Segundo a tese da indignação bem-pensante (vagamente de esquerda), o "Pingo Doce", com o notório coração de pedra do capitalismo, aproveitou a crise e a nova e a velha miséria do país para uma operação de publicidade, que só pode humilhar os que dela beneficiam e aumentar o ressentimento social dos portugueses, que já sofrem mais do que o admissível.

A quem chegasse a 1 de Maio do Alasca ou da Califórnia as multidões que se precipitaram para as 369 lojas do "Pingo Doce" por 50 por cento de desconto haviam com certeza de parecer enlouquecidas, principalmente quando participaram em "desacatos" (uma palavra policial) em mais de metade das "superfícies" de Lisboa e arredores. Mas quem contar com o amor atávico do indígena ao desconto não se deve espantar muito. Só quem não o viu nos saldos, nas feiras, nas barracas, nas filas de gasolina ou no pequeno comércio "em liquidação" se chocaria com o último 1.º de Maio. Não quero com isto insinuar que não existe fome, verdadeira fome. Quero lembrar que a corrida à "pechincha" e o "bodo aos pobres" não são exactamente um fenómeno original num país que viveu sempre na pobreza e que a torna agora a reconhecer de mês para mês. Que o "Pingo Doce" aproveitasse as dificuldades do próximo a benefício da sua posição comercial não mostra o melhor gosto. Mas não é drama.

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