As sagas do rei das prescrições e do rei dos espiões

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Findo o 1.º acto da saga da nomeação dos juízes para o Tribunal Constitucional, duas outras sagas ocuparam o palco principal da actualidade nacional. Numa, brilha o autarca Isaltino Morais, o rei das prescrições, noutra, brilha em todo o seu esplendor Jorge Silva Carvalho, o rei dos espiões. Sagas tipicamente nacionais que, penosamente, vemos desenrolarem-se à nossa frente e cujo fim, todos receamos, seja mais uma rodada de impunidade geral.

O autarca pode, no mínimo, orgulhar-se de ser um verdadeiro reformador legislativo: a sua mais recente prescrição já levou a ministra da Justiça a defender a sua proposta legislativa de aumento dos prazos de prescrição, com o argumento de que vem evitar que os sucessivos recursos apresentados pelos arguidos com mais poder económico os livrem do cumprimento das penas a que foram condenados.

Infelizmente e como é habitual no nosso país, vai-se pelo caminho mais fácil e passa-se alegremente do 8 ao 80, não olhando ao que o bom senso ditaria. Em primeiro lugar é preciso dizer que os nossos prazos de prescrição não são particularmente curtos e que uma das principais razões das prescrições é o mau funcionamento do sistema judicial e não os prazos em si. Assim, aumentar os prazos, por si só e de uma forma gravosa e quase indiscriminada, é desresponsabilizar o sistema e os seus agentes, permitindo que a morosidade saia impune, assim se prestando um mau serviço à Justiça. Estamos, como diz um provérbio chinês, "a roer o próprio pé para adaptá-lo ao sapato". A prescrição, como todos percebemos quando foi recusada a extradição do cidadão Jorge Santos pelos EUA, faz parte da nossa matriz humanista europeia que convém não esquecer.

Ora a reforma agora proposta vem permitir, como se refere no parecer do Gabinete de Estudos da Ordem dos Advogados, que um arguido possa ter os prazos de prescrição suspensos por estarem pendentes recursos durante 20 anos! Parece manifestamente exagerado. Parece que, como sempre, não queremos ser exigentes com o funcionamento do sistema judicial, antes preferimos impressionar a opinião pública e, sobretudo e é o que custa mais, não somos inteligentes.

A inteligência, de resto, está no cerne da outra saga que constitui o centro das nossas preocupações - as aventuras e desventuras do personagem Jorge Silva Carvalho que, pelo que já apareceu por aí, não "brinca em serviço". Sendo certo que o seu conceito de serviço é muito amplo.

Mas se as actividades deste notável personagem são preocupantes, a verdade é que, quanto a ele, a máquina da justiça, de forma seguramente imperfeita mas ainda assim efectiva, está em andamento. Foi acusado criminalmente, irá, certamente, defender-se, será ou não julgado e será ou não condenado. De qualquer forma, já está obrigado a prestar contas publicamente pelas suas actividades culturais.

Verdadeiramente preocupante é sabermos que face à gravidade dos factos revelados no processo judicial e na acusação deduzida contra Jorge Silva Carvalho, João da Silva Luís e Nuno de Almeida e Vasconcellos, tudo continue na mesma nos serviços secretos !

É verdade que se registaram duas demissões no SIED, mas estas só aconteceram dois dias depois de ser divulgada a acusação com a revelação de factos gravíssimos; e, sobretudo, depois de o jornal PÚBLICO ter publicado na sua primeira página, em manchete, no passado dia 9 que os "Agentes que passaram dados a Silva Carvalho continuam nas secretas". O que parece é que um serviço público, que devia ser de excelência e inteligência, só toma medidas depois de o caso estar na praça pública!

Saliente-se que um dos demitidos tinha sido um dos escolhidos para dirigir a primeira investigação interna do SIED e é uma das pessoas apontadas como pertencendo à mesma loja maçónica de Silva Carvalho. Mas há mais: segundo os trabalhos publicados neste jornal da autoria da jornalista Maria José Oliveira, haverá duas directoras de departamentos do SIED que, segundo uma denúncia anónima, mas considerada consistente pelo DIAP, serão responsáveis pelas fugas de informações para Silva Carvalho, sendo muito próximas deste. E uma delas tinha sido a escolhida para igualmente dirigir os dois inquéritos internos pedidos pelo primeiro-ministro relativos às fugas de informações para a Ongoing e ao acesso ilegal aos registos telefónicos do jornalista Nuno Simas!

Se tem a sensação de estar a assistir a um autêntico regabofe é natural que se pergunte: mas quem manda nisto? Quem deveria imediatamente apresentar a sua demissão por manifesta incapacidade de escolher as pessoas certas e para gerir um serviço de enorme responsabilidade, mas que está transformado numa loja mal afamada? A resposta está na obra de Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, de uma forma enigmática, como convém a um serviço secreto: "Ninguém."

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