Amélia Varejão

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A Amélia era do Porto e ainda no Teatro Experimental de António Pedro, naquele pequeno teatro - estranho destino, um banco, hoje - magnífico da Baixa portuense, fez-se a referência máxima da criação e confecção de fatos para teatro na segunda metade do século que passou. A Amélia morreu de muito viver, com 93 anos. A morte da grande mestra de costura não é notícia, a crise tem prioridades que a verdade dos factos, a história e a democracia desconhecem.

Com António Pedro aprendeu o ofício, escrevo a palavra com a profundidade que transporta, uma profissão a fundo, infinitas horas de trabalho, treino dos detalhes ínfimos, sabedoria do traçar no pano, do corte e conhecimento do corpo, dos seus humores e movimentos. Nessa matriz do teatro contemporâneo português aprendeu as épocas, os fatos de época, com o mestre António Pedro, poeta, encenador, artista plástico, teórico e prático dos ofícios do teatro. Azares da vida casou e descasou rápido para fugir a penar mais do que se pode. Foi para Lisboa e aí trabalhou com o TEP e com Carlos Avilez. Muitas vezes me referiu a digressão ao Japão como um momento de excepção na sua vida de teatro, uma outra vida na vida que teve, aventurosa, de teatro, ficção de vício de ficção aprendida de cor.

Conheci a Amélia em Évora, em pleno PREC. A aventura de Mário Barradas nesta cidade, logo em janeiro de 1975, chamou por ela e foi, já a meio dos 50. Nessa altura, pelas mãos da Amélia, muita alinhavo, agulha e linha tinham feito caminho e enredos em tecidos. Em Évora e de acordo com a ideia fundadora do teatro - Centro Cultural de Évora, mais tarde, por nossa iniciativa, refundado Cendrev - a Amélia encarregou-se de criar uma oficina de costura, um centro de criação e formação de guarda-roupa para teatro. Ainda me vejo, nesse espaço esconso do nível da teia, por cima dos camarotes das frisas da segunda ordem, do lado sul do italianíssimo Teatro Garcia de Resende, o mais belo do país, a tirar medidas, no meio daquelas senhoras de meia-idade de piropo brejeiro nos lábios dispostas ao prazer do jogo verbal. E lá estava a Amélia, sempre de tesoura de corte nas mãos, os desenhos dos figurinos alfinetados nos tecidos escolhidos de cada fato, a cortar tecido, momento definitivo, parto da forma, feito a olho preciso mas calhado de experiências nas mãos - "as artroses, meu filho, as artroses é que me traem" - seguindo um rumo pelo tecido fora como um navio de cabotagem traça rigorosa linha num mar chão quando o piloto sabe o que faz. Saber de experiência, como o dos velhos mareantes, um saber que hoje, em que tudo se faz feito, parece desprezar-se - por estupidez - e impede que as coisas se façam com o sentido de rigor e perfeição, artesanais, que fazem com que um fato e um corpo possam casar e originar uma personagem, seja por coincidir com o corpo, seja por lhe faltar algo, seja por ser avantajado, artificial, como o que fez para o Jorge Dandin do George Dandin de Molière que fizemos em 1979.

Mas devo à Amélia algo mais do que admiração que tenho por ela, exemplo, e os muitos guarda-roupas que connosco realizou no Teatro da Rainha. Foi a minha primeira mãe no Ella, figura trágica de mulher meio deficiente que durante o nazismo, e em tempo posterior, foi a carne crucificada de um Cristo quotidiano no feminino. Com a sua esbelta figura, mulher alta, cabelos longos e abundantes, sentada diante da TV uma hora e tal de enfiada, ela, Amélia, foi Ella, essa resistente de uma vida que a TV engolira, ali, diante dos espectadores. A Amélia era actriz também, figura. Ainda vejo os seus olhitos espantados a observar-me, eu de toucado de penas de galinha enfiado, a regurgitar as histórias que lhe ouvira da própria vida, histórias-limite, maus tratos parentais, fugas, hospício, prisão, vagabundagem, doença. O destino de uma pobre deficiente na Alemanha de que fala Herbert Achternbusch, grande dramaturgo e cineasta, não poderia eventualmente ser outro, a Baviera natal é um estranho país. No fim da representação, com os seus 73 anos, lançava-se sobre mim com a coragem de um corpo decidido, caído eu de borco no chão de tábuas do galinheiro de assoalhada e meia. O espectáculo fez 32 apresentações seguidas na mina de carvão da sala das caldeiras do antigo Hospital da Universidade, em Coimbra, sala cheia, carreira seguida. Entre a Amélia e Ella um parentesco de afinidades levara a uma grande criação, de um mutismo trágico e fundo, um silêncio que gritava naquele rosto branco de rugas suaves, rosto longo, cabelo espesso meio grisalho a cair-lhe sobre os ombros, sem uma falha, cabelo meio cigano.

Não sabes a falta que nos fazes, Amélia. O teatro está definitivamente mais pobre.

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