A sociedade aberta e os seus inimigos

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Depois do interregno estival, ser-me-á talvez perdoado não regressar de rompante ao comentário da actualidade política (aliás pouco estimulante, com excepção da promessa de um sério debate político na campanha presidencial norte-americana). Falarei do que me parece ser o grande evento editorial desta rentrée: uma nova tradução pelas Edições 70 de A Sociedade Aberta e os seus Inimigos, de Karl Popper. São mais de 800 páginas, em dois volumes, estando o primeiro anunciado para o final deste mês de Setembro.

O livro, originalmente publicado em língua inglesa em 1945, é geralmente apontado como um dos mais importantes do século XX. Surge invariavelmente nas listas internacionais dos 25 mais influentes, muitas vezes também nas listas dos 10 livros que mais profundamente marcaram, e mudaram, o século XX. Foi traduzido em literalmente todas as línguas do planeta, nalguns casos em edições clandestinas, sobretudo em países sob regimes ditatoriais, comunistas ou de sinal oposto. Entre nós, foi inicialmente publicado em 1990, pela Editorial Fragmentos, mas estava há muito esgotado.

Desde a publicação original em 1945, A Sociedade Aberta foi aplaudida por filósofos, políticos e estadistas de várias inclinações políticas democráticas, à esquerda e à direita. Isaiah Berlin considerou que a crítica nele contida ao marxismo fora a mais devastadora jamais produzida. Bertrand Russell chegou mesmo a dizer que A Sociedade Aberta de Karl Popper era uma espécie de Bíblia das democracias ocidentais. Na Alemanha, o chanceler social-democrata Helmut Schmidt e o chanceler democrata-cristão Helmut Khol prefaciaram obras de, ou sobre, Karl Popper. Em Portugal, Mário Soares e Diogo Freitas do Amaral declararam-se admiradores do velho filósofo. Tive o prazer e o privilégio de acompanhar cada um deles em visitas privadas a casa de Karl Popper, em Kenley, perto de Londres, em 1992 e 1993, respectivamente.

O impacto imediato da publicação de A Sociedade Aberta e os seus Inimigos centrou-se na sua crítica demolidora do marxismo. Esta foi a primeira mudança fundamental operada por Karl Popper no século XX: a demolição intelectual e moral do marxismo, em nome da tradição da liberdade e responsabilidade pessoal. Creio que é possível identificar três elementos inovadores fundamentais nesta crítica.

Em primeiro lugar, Karl Popper reconheceu e elogiou o impulso moral humanitário e "melhorista" subjacente à doutrina de Marx, o impulso para melhorar a sorte dos nossos semelhantes e aliviar o sofrimento humano susceptível de ser evitado. Mas, simultaneamente, acusou a doutrina de Marx de ter abandonado e até "atraiçoado" esse impulso moral humanitário que lhe dera origem, em troca de uma ideologia dogmática e destituída de moral, ou moralmente relativista. Por outras palavras, Karl Popper condenou a mensagem moral de Marx em nome dos próprios princípios morais humanitários de que Marx se reclamara.

Em segundo lugar, Karl Popper dissecou o conteúdo substantivo da doutrina de Marx, agora separada do seu impulso moral, e acusou-a de reaccionária. Colocou-a sem hesitações ao lado das ideologias contrárias à sociedade aberta, as ideologias totalitárias, de esquerda ou de direita, como o nacional-socialismo, ou nazismo, e o fascismo, que "continuam a tentar derrubar a civilização e regressar ao tribalismo". Por outras palavras, Karl Popper condenou a doutrina de Marx em nome da ideia de progresso de que Marx se reclamara.

Em terceiro lugar, Karl Popper criticou duramente a ilusão do "socialismo científico" que Marx acabara por colocar no centro da sua doutrina. Popper mostrou que o "socialismo científico" simplesmente não existe. Trata-se de uma superstição primitiva e profundamente contrária à atitude científica, uma superstição dos que "acreditam que sabem, sem saberem que acreditam", a que Popper chamou de historicismo. Por outras palavras, Popper criticou a doutrina de Marx em nome da atitude científica de que este se reclamara.

Karl Popper desenvolveu uma poderosa e emocionada defesa do ideal da sociedade aberta, fazendo remontar as suas origens à civilização comercial, marítima, democrática e individualista do iluminismo ateniense do século V a.C. - que o autor contrasta duramente com a tirania colectivista e anti-comercial de Esparta. Para Popper, o conflito que no século XX opôs as democracias liberais do Ocidente aos totalitarismos nazi e comunista é, nos seus traços essenciais, um conflito semelhante ao que opôs a democracia ateniense à tirania espartana. As modernas democracias liberais são herdeiras de um longo processo de abertura gradual das sociedades fechadas, tribais e colectivistas do passado - processo que terá tido início em Atenas e noutras civilizações marítimas e comerciais como a da Suméria, e que recebeu um contributo adicional decisivo por parte do Cristianismo.

P.S.: A campanha que está a ser ensaiada contra Rui Ramos e a notável História de Portugal por ele coordenada, em boa hora distribuída em fascículos pelo Expresso, é um triste exemplo de reacção contra a atitude intelectual de uma sociedade aberta. Em vez de debate de ideias, vemos acusações grosseiras que visam estigmatizar a obra. Felizmente, vivemos numa sociedade aberta e cada pessoa pode ler o livro e ajuizar livremente.

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