A soberania era a cadela de um cego...

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A ideia estatal de um poder supremo que se exerce num território sobre um povo está em vias de caducar

1. Lembro-me amiúde de uma "historieta" - algures entre a moral e a sociologia - que a minha avó do Souto, com um fio de voz e já razoavelmente esquecida, contava e recontava a cada passo. "A Consciência era a cadela de um cego. Um dia, a cadela fugiu. O cego gritou: "Consciência! Consciência!" Mas nunca mais ninguém a viu".

Quando assisto - de há largos anos a esta parte, mas, em especial, nos últimos meses -, em Portugal e nos outros países europeus, à invocação sistemática e indiscriminada do valor da soberania, acabo sempre a pensar na cadela que escapou. O canídeo fugiu, não há notícia de que alguém o tenha avistado e suspeito (muito suspeitado) que nem empregando a melhor tecnologia disponível o animal acabará por ser achado.

2. Vem isto a propósito da obrigação de inscrever na Constituição ou em nível equivalente um limite formal ao défice público. Cura-se de uma das imposições do tratado a celebrar que mais brado deu entre nós e que, ao que parece, ainda fará correr alguma tinta. Não vislumbro qualquer préstimo na "constitucionalização" deste tipo de grandezas macroeconómicas, seja porque se trata de matéria estranha às funções da Constituição, seja porque tais variáveis não são "domináveis" por artes ou magias jurídicas. De resto, para lá do efeito político de aquietar uma pulsão alemã - de exorcizar os demónios e fantasmas teutões -, não vi ainda argumentos convincentes. Argumentos com consistência, só talvez os que tem mobilizado Paulo Mota Pinto, ao ligar a sustentabilidade das finanças públicas à missão social do Estado. Como a cláusula social de qualquer Constituição depende, em primeiro e último termo, de uma possibilidade financeira, o tendencial equilíbrio financeiro não seria mais do que uma exigência e decorrência da própria sustentabilidade do Estado social... Mesmo assim, tais razões não chegam para me convencer e, por isso, conservo a opinião inicial: a consagração de um princípio deste jaez afigura-se francamente inócua.

3. Deixando agora de lado a substância do princípio, olhemos para as questões de poder. Que leitura devemos fazer - nós portugueses e, já agora, todos os outros - de um tratado que impõe expressamente uma alteração das constituições dos seus signatários? Alguns acharão a questão bizarra, já que não é a primeira vez - longe disso... - que se modifica uma Constituição por força do disposto num tratado. Assim aconteceu, por exemplo, com a saga de Maastricht e assim sucedeu com a instituição do Tribunal Penal Internacional (desta feita, deixando cair até uma trave fundamental da tradição humanista portuguesa: a proibição da prisão perpétua). Mas aí os tratados em causa, em si e por si, não impunham uma modificação da Constituição. Eles implicavam (no caso português) uma revisão da Constituição, mas não a impunham. E entre "implicar" e "impor" vai todo um mundo de diferença.

Na verdade, uma coisa é cada Estado, de per se, averiguar se a assunção de uma certa obrigação interfere com o seu quadro constitucional. E outra, de calibre bem diverso, é a assunção - ainda que voluntária - de que todos os Estados têm de "uniformizar" ou "homogeneizar" as suas constituições. No primeiro caso, a negociação internacional, pura e simplesmente, abstrai da Constituição de cada um dos Estados-partes; no segundo, a negociação dirige-se intencional e imediatamente às constituições para as conformar e transformar. Eis uma situação que dá que pensar a todos quantos continuam a rever-se no conceito de soberania e reclamar-se seus intrépidos defensores. Ainda por cima, quando o tratado é feito à margem das regras próprias da União Europeia, para a qual, apesar de tudo, já havia normas de "reconhecimento e acolhimento constitucional".

4. O busílis da questão reside, a meu ver, na insistência acrítica na ideia tradicional de soberania. A soberania é um conceito criado num dado contexto histórico-político, pensado para um mundo em que o poder estava estritamente "territorializado" e em que cada Estado podia facilmente encarcerar-se nos limites da sua jurisdição (espacial e pessoal). Nesse cenário, era quase sempre possível reconduzir a responsabilidade pelo que acontecia dentro de um território estatal ao respectivo centro de poder. Mas o fenómeno da "desterritorialização" do poder - hoje especialmente visível no domínio das tecnologias, das questões ambientais e da mobilidade global - pôs em causa essa possibilidade de recondução e postula uma superação dessa acepção de soberania. Actualmente, os Estados têm de transigir, não apenas com os restantes Estados, mas com um sem-número de sujeitos da comunidade internacional - desde logo, e à cabeça, as organizações internacionais e supranacionais. Têm também de quinhoar o seu poder com um universo de organizações corporativas, empresariais, confessionais, desportivas e outras que se afirmam e movimentam na rede global de poderes. Isto para não falar dos mercados...

É necessário assumir, de uma vez por todas, até ao nível da Constituição, que o Estado deixou de ser o monopolista do poder, tem agora de o partilhar e repartir. E, por isso mesmo, as comunidades políticas nacionais terão mais poder, mais capacidade de afirmação e mais influência, encontrando-se articuladas em rede do que estando enclausuradas nos sinais exteriores da vetusta soberania. Não pode, por isso, estranhar-se que os mecanismos constitucionais devam agora reflectir essa "independência interdependente" e possam conviver com a ideia de articulação com outras fontes de poder político. A ideia estatal de um poder supremo que se exerce num território sobre um povo está em vias de caducar. O povo, como o cego da história, terá de encontrar outros guias que não a soberania. E isso será - está a ser - um enorme transe para a democracia. Esse é outro problema. A bem dizer, esse será o problema. Deputado europeu (PSD), vice-presidente do Grupo Parlamentar do PPE; paulo.rangel@europarl.europa.eu

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