A história do comunismo não cessa de condenar a sua ideia

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Para o PCP, reformar, ainda que numa óptica emancipadora, continua a ser uma traição imperdoável

1. Vinte e poucos anos depois da implosão da União Soviética e do seu império tentacular, desligada dos seus falhanços históricos concretos, a ideia comunista estará de volta? Gianni Vattimo, importante filósofo italiano contemporâneo, autor de uma das mais fecundas interpretações da pós-modernidade referenciada ao pensamento de Nietzsche e de Heidegger, acaba de proclamar a pertinência actual do marxismo-leninismo no livro que recentemente escreveu, em parceria com Santiago Zabala, intitulado Comunismo Hermenêutico, de Heidegger a Marx. Para Vattimo, só o comunismo, enquanto ideal forte, nos poderá salvar da tirania cientificista imposta no plano económico e que se limita a legitimar uma ordem social injusta. O ideal comunista, perspectivado como uma ambição radicalmente democrática e igualitária e defendido politicamente pelos mais débeis, os pobres, pode opor-se ao capitalismo hegemónico e impor-se como um novo horizonte de esperança em sociedades descrentes e desesperadas. O que parece haver de novo, e até mesmo extraordinário, nesta visão é a opção por um entendimento do marxismo como vontade e projecto moral, por contraponto a uma herança historicista e positivista que, em grande parte, determinou o curso anterior dessa corrente de pensamento. Vattimo exalta no marxismo-leninismo a célebre associação da electrificação com os sovietes, isto é, do impulso desenvolvimentista com a utopia de uma forma especial de democracia. Curiosamente aponta para a Venezuela de Hugo Chávez e a Bolívia de Evo Morales como os exemplos actuais onde tal associação se consubstancia. É caso para dizer que só um desencanto radical com o presente, uma absoluta desilusão com as democracias representativas ocidentais pode conduzir um grande intelectual europeu à aceitação de tão estranhas ilusões.

Lendo Vattimo recordo-me das páginas finais de O Passado De Uma Ilusão, obra magistral de François Furet e notável libelo acusatório contra o comunismo nas suas manifestações concretas. Nessas derradeiras folhas o grande historiador francês, finda uma cruel desmontagem da ilusão comunista, alerta com pungente lucidez para as consequências daí resultantes para o homem contemporâneo, doravante condenado a viver num estado de permanente angústia. O espírito moderno, profundamente democrático, convive mal com o fatalismo de uma sociedade dividida entre ricos e pobres e percebe como uma tragédia o confronto entre a afirmação dos direitos humanos e a deificação do mercado. Não é por isso de estranhar que se lance na procura de um ideal comunitário subsidiário de uma utopia igualitária. Ora o comunismo, enquanto ideia ou ilusão, representava essa aspiração. É verdade que, na sua roupagem marxista, aspirava a um estatuto científico e apontava para uma perspectiva teleológica da história, com o que trazia consigo a dimensão totalitária que tão dramaticamente o caracterizou nas suas formulações concretas.

Com Vattimo o marxismo-leninismo parece regressar como um refúgio último do espírito crítico, derradeira ocasião de afirmação da liberdade humana perante a asfixiante hegemonia do pensamento neoliberal erigido em descrição única e prescrição necessária nos planos económico e social. Por muito estranho que possa parecer, o filósofo italiano revaloriza o marxismo-leninismo enquanto condição de recuperação do pluralismo político e da liberdade de escolha dos cidadãos. Creio que está errado, mas que se tenha dedicado a tal exercício não pode deixar de suscitar a nossa reflexão.

2. O PCP realizou há poucos dias o seu XIX Congresso e aprovou um documento de orientação programática e estratégica que merece ser lido com atenção. Não há provavelmente em Portugal, por mais paradoxal que isso possa parecer, nenhum outro partido com tão pouca liberdade crítica e com tão intenso debate político como o PCP. Por isso mesmo as Teses agora aprovadas permitem-nos uma compreensão exaustiva da natureza, das intenções e do projecto político deste partido. Vale a pena analisá-las.

Comecemos pela linguagem. Está lá tudo o que identifica historicamente o movimento comunista internacional - a língua de madeira, o jargão ideológico, as limitações semânticas. Aquela linguagem não engana, remete-nos permanentemente para a coerência de um mundo mental fechado, assente numa representação simplista da realidade e encarcerado numa dialéctica infecunda. Folheiam-se as páginas e deparamo-nos sempre com a mesma árida vulgata marxista, devidamente amputada de qualquer veleidade imaginativa. A linguagem transformada numa prisão do pensamento. Estamos diante de uma nova escolástica, ineficaz na compreensão da realidade, útil no apuramento de uma convicção ilusória. Imagino milhares de militantes honestamente deleitados com esta recitação doutrinária, a que não falta por vezes a aparência de uma verdadeira grandeza moral.

Nalguns domínios as Teses são particularmente esclarecedoras. Para o PCP o fim da União Soviética e do modelo comunista nela inspirado constituiu a tragédia fundadora das últimas décadas. Ainda hoje lamentam tal acontecimento histórico, já porque terá provocado um retrocesso civilizacional nos países anteriormente designados por socialistas, já porque terá proporcionado uma expansão incontrolada do imperialismo capitalista. Para o PCP é irrelevante constatar que nenhum dos povos saídos dos regimes comunistas manifestou até hoje a mais ligeira intenção de aí retornar. Isso não conta para nada.

De tal perspectiva decorre uma curiosa interpretação do sistema internacional. A Coreia do Norte, o Laos, o Vietname, Cuba e a China são saudados como insubstituíveis focos de resistência ao avanço do modelo capitalista que tem a sua sede nos Estados Unidos da América. Não importa nada que estejamos a falar de algumas das mais atrozes ditaduras contemporâneas, já que para o PCP os direitos humanos, a democracia representativa e as liberdades públicas parecem permanecer num limbo meramente formal, e como tal desprovido de verdadeira substância concreta. A forma como abordam a questão síria é assaz elucidativa - para os comunistas portugueses o tirano Assad é uma inocente vítima do belicismo ocidental.

Por último, importa referir a maneira como continuam a desprezar a social-democracia, reduzida a um estatuto de corrente colaboracionista com o modelo capitalista na sua versão mais radical. Para o PCP, reformar, ainda que numa óptica emancipadora, continua a significar uma traição imperdoável.

Pergunto-me o que pensaria Vattimo de tão peculiares Teses. Como reagiria ele se confrontado com o universo mental dos comunistas portugueses. Continuaria a acreditar na pertinência do ideal marxista-leninista face ao capitalismo triunfante ou limitar-se-ia a desvalorizar como anacrónicas posições tão notoriamente insustentáveis?

Na verdade o comunismo depara-se com uma tragédia inultrapassável: a sua história não cessa de condenar a sua ideia. Se ameaça voltar é porque alguma coisa está a correr mal no campo do socialismo democrático. Essa é que deve ser a verdadeira inquietação da esquerda no nosso tempo.

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