A crise do fulanismo

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Um país tutelado e a empobrecer tende a não reconhecer os seus líderes como líderes, mas apenas como fulanos

Quem nasceu para a política nos idos de 1974 sabe bem o quanto vale um ismo. Havia-os de todos os gostos. Fosse em nome do capitalismo ou do comunismo, do fascismo ou do social-fascismo, não havia ser humano que se prezasse que não fosse sufixável. Não ter um ismo era como não ter uma perna. Eram os ismos que nos guiavam pelos istmos do mundo: acreditava-se que as ideologias eram a diferença entre o bem e o mal, a justiça e a injustiça, a prosperidade e a pobreza. Palavras mágicas que bastava pronunciar para mudar o mundo.

Nesses tempos do PREC e anos imediatamente posteriores, os ismos dividiam. Era quando as pessoas tinham o gosto genuíno por aquilo a que à época se chamava o "debate ideológico". Uma espécie de desporto argumentativo que se praticava com a mesma intensidade com que hoje se discute futebol... Perdeu-se qualquer coisa nessa transição dos "ismos" para os "istas", em que comunistas, socialistas ou centristas passaram a discutir em público enquanto portistas, benfiquistas ou sportinguistas.

Perdeu-se a política, no fim de contas.

Mas não foram só as pessoas que abandonaram a política e a crença nas ideias. Com os políticos aconteceu mais ou menos o mesmo.

Acredita-se que os portugueses gostam pouco de divisões, embora gostem todos de estar na primeira divisão. Não foi só por causa disso que, no tempo em que os ismos eram fortes, apareceu o discurso contra os ismos. As ideologias não resolviam nada e do que precisávamos era de tecnocracia e de pragmatismo. De ideias, nem tanto.

O tempo do anúncio do fim dos ismos coincidiu, em Portugal, com a queda no real depois da revolução. Nos meses do PREC, ninguém se dava conta que houvesse recessão económica ou sequer economia. Havia assuntos bem mais importantes a resolver. Com a normalização do regime, descobriram-se coisas extraordinárias: os ismos mágicos da ideologia não resolviam problemas como o dinheiro que rareava nos cofres públicos. Mais do que o sufixo das ideias, faltava à política o prefixo monetário.

Foi mais ou menos por essa altura que o dr. Soares decidiu meter o socialismo na gaveta e que no PSD as pessoas finalmente concluíram que não era preciso andar o dia todo a falar bem do dito socialismo para não serem vistos como agentes da reacção. Verdadeiros ou falsos, os ismos morriam no pelourinho do pragmatismo. Mas essa transição fez-se de uma maneira bem portuguesa. Trocámos os ismos ideológicos pelo ismo do fulanismo. Os líderes (e os candidatos a líderes) passaram a estar no centro da política.

O fulanismo, evidentemente, já tinha sido inventado. Estávamos a sair do salazarismo e do marcelismo. Mas, liberta de ditadores, a política partidária não se libertou da sufixação dos líderes de partido ou de facção. Sufixação cuja existência todos os líderes, de partido ou de facção, negam alguma vez ter existido.

O país que era do soarismo, do eanismo ou do cunhalismo seria depois o país do cavaquismo. Mais tarde do guterrismo, do sampaísmo, do barrosismo. Houve outro marcelismo, um ferrismo e um santanismo. Fartámo-nos de ismos. E estes tornaram-se o símbolo de uma política esvaziada de ideias e organizada em grupos de poder.

Naturalmente, o fulanismo trouxe problemas. Semânticos, desde logo. A sufixação dos apelidos transformava em estátuas políticas líderes humanos de carne e osso. Mas mesmo as estátutas precisam de nomes e nem todos os nomes são sufixáveis. O fulanismo de direita, por exemplo, foi penalizado durante muito tempo pela mania queque de usar dois apelidos. Houve quem tentasse ser mota-pintista ou sá-carneirista, mas era francamente impossível ser-se pinto-balsemista ou aderir ao freitas do amaralismo. Com Cavaco, tudo mudou (o PSD deixou de ser queque). À sombra do cavaquismo nasceram mesmo os sub-ismos, como o nogueirismo, o loureirismo e o barrosismo. Depois do nogueirismo, tudo se tornou possível, até mesmo ser-se mendista ou menezista.

A dura e implacável semântica do sufixismo determina também quem pode ou não ser líder em nome próprio. Chegou a haver um gamismo, mas nunca um constancismo, um alegrismo, um carrilhismo.

Mas, hoje em dia, é quase impossível encontrar um fulanista que se aproveite. Podemos, por exemplo, seguir os passos de alguém que se chama Passos e assim ser passista? Não me parece. É possível, por exemplo, querer ser parte do clã do ministro Relvas e portanto ser relvista? De forma alguma, uma vez que seria impossível distinguir um adepto do ministro Miguel Relvas de alguém que aprecia relvados. Será um socialista capaz de se afirmar como segurista sem se sentir um pouco inseguro? E pode um comunista ser souzista ou um bloquista ser louçãzista ou fazendista? Não funciona.

Sim, continua a haver portistas, mas isso é a excepção que confirma a regra. E a regra é que se o fulanismo tem sido a expressão do vazio da política, a crise do fulanismo mostra que a política está para lá do vazio.

A mudança de geração nos dois maiores partidos coincidiu com a crise mais grave dos últimos anos e com o memorando da troika. Para fazer de conta que é autónomo, o Governo vai "mais longe" do que a troika. Para fazer de conta que é oposição, o PS diz que o Governo não devia ir "mais longe" do que a troika.

Um país tutelado e a empobrecer tende a não reconhecer os seus líderes como líderes, mas apenas como fulanos. Antes fosse só um problema de nomes.

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