Sobre o vírus extremista

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É irónico que uma Alemanha limpa de extremismos políticos possa estar rodeada de focos de radicalismo

1.. De há muito que os democratas-cristãos alemães (e seus aliados, os sociais-cristãos da Baviera e os liberais) explicam, ao mais alto nível, os espinhos da política europeia do seu Governo com o receio do surgimento (e do sucesso) de um partido de extrema-direita. As cúpulas partidárias acreditam que, atendendo ao posicionamento conservador de algumas franjas do eleitorado de direita e de centro-direita, um partido de ideologia "nacionalista", com um discurso anti-europeu e anti-imigrantes, poderia singrar com uma razoável facilidade no espectro político. Não precisaria - e, porventura, nem seria avisado que o fizesse - de adoptar uma cartilha ideológica nacional-socialista, fascista ou protofascista (que, de resto, já por lá alimenta alguns grupúsculos, sem êxito visível). Bastar-lhe-ia centrar o seu núcleo programático no défice democrático europeu, no despesismo endémico de alguns dos membros da União, na impossibilidade de integração dos imigrantes muçulmanos ou de certos países e no virtuosismo das características do povo alemão. Em suma, seria decerto suficiente que se afirmasse como um movimento eurocéptico com valores conservadores para impor à CDU uma perda sensível do respectivo eleitorado.

Compreendem-se bem os receios e o medo daqueles dirigentes políticos: a emergência de um partido de direita pura na Alemanha, com visibilidade parlamentar ou até com relevo para facilitar ou impedir certas soluções governativas, teria um significado e um simbolismo terríveis para o país. A recordação dos profundos traumas do nazismo transformaria a potência agora reabilitada numa espécie de pária - um "Estado bomba-relógio" -, relativamente ao qual todos os restantes parceiros passariam a usar de uma estratégia preventiva de afastamento. Muitos países conhecem já um surto de movimentos extremistas de direita (e de esquerda), com uma expressão eleitoral confortável. Mas nenhum deles - tirando talvez a excepção, de resto, bem reveladora, da Áustria nos idos de 2000 - sofreu o opróbio que a Alemanha sofreria, no caso de uma corrente radical obter um resultado eleitoral minimamente relevante. Compreende-se, pois, a obsessão com essa ameaça e o grande esforço para absorver, integrar e acolher esse eleitorado potencial. A Alemanha não quer e não pode correr esse risco.

2. Estando, num destes dias, num debate televisivo e tendo usado, para justificar alguma inflexibilidade germânica, este argumentário, deparei-me com uma interessante e pertinente observação de Nuno Severiano Teixeira. Dizia ele que a política europeia do Governo alemão tem sido bem sucedida no desiderato de evitar o crescimento de um partido radical no plano interno. Mas acrescentava, com razão, que paradoxalmente não tem evitado, e parece até ter propiciado, o fortalecimento de partidos radicais de direita, com votações expressivas, em todos os seus vizinhos e até em parceiros europeus mais distantes. Com efeito, a Holanda, a França, a Bélgica, a Suíça, a Áustria e a Dinamarca conhecem bem, e com representação parlamentar ou eleitoral significativa, o fenómeno. E o mesmo vale para a Suécia, a Finlândia, a Noruega, a Itália e a Hungria, que, não tendo fronteiras com a Alemanha, se situam nitidamente num "segundo anel" de interacção. Já na Polónia, um dos vizinhos grandes, é óbvio o vigor do PiS ("Lei e Justiça", conhecido como o "partido dos gémeos Kaczynski"), que justamente poderia inspirar o tal movimento de direita conservadora e eurocéptica, mas não nitidamente extremista. E no caso da República Checa, embora sem forças radicais de direita no parlamento, é já proverbial a cultura de eurocepticismo que domina os partidos e as figuras políticas determinantes.

Seria temerário, se não fosse infantil, partir do princípio de que esta vitalidade da direita radical europeia fica a dever-se à resposta alemã à crise. Na verdade, os movimentos extremistas estão activos e pujantes bem antes de a crise de 2008 se ter declarado. Mas não restam dúvidas de que a solução europeia para o transe das dívidas soberanas pode ter favorecido e estar ainda a favorecer a dinamização e catalisação desses movimentos. Movimentos que, diga-se, não são apenas de direita, mas são também de esquerda extrema e radical. O radicalismo de esquerda, na versão comunista do socialismo real e nas suas derivações e dissidências - testadas na Albânia ou na Roménia, na China ou no Vietname, no Cambodja ou na Coreia -, fez tantas ou mais vítimas e é tão pavoroso como o extremismo de direita. Será decerto socialmente mais bem tolerado - como certas drogas do mainstream -, mas não é menos pernicioso. Muitos se escandalizam - e justamente - com a aparição de neonazis na Grécia, mas a subida vertiginosa da esquerda radical e comunista não é menos preocupante.

3. Não deixa, na verdade, de ser irónico que uma Alemanha limpa de extremismos políticos possa estar rodeada, nas margens das suas fronteiras, de focos de radicalismo de direita e de esquerda, mesmo que intermitentes. Mas será muito simplista da nossa parte pensar que tudo se deve à crise e ao modo como lhe temos respondido. Ou alguém acredita que, antes da falência do Lehman Brothers, as nossas notáveis democracias gozavam de saúde para dar e vender?

Como ontem aqui explicava João Carlos Espada, as democracias são frágeis e delicadas. Precisam de atenção e de cuidados e estão permanentemente expostas ao vírus do populismo e da demagogia. As razões são muitas e variadas. A etiologia é complexa. Mas uma coisa é certa: o vírus está instalado. A dúvida é só uma: devemos chamar o médico ou o técnico informático?

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