Oliveira mostra o pobre a gritar por força maior, já!

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Crises não matam vida e cinema. No festival de Veneza, daqui a dias, Manoel de Oliveira apresenta o seu novo filme, O gebo e a sombra. "Faz um filme sobre a pobreza", pedem-lhe. Ao que respondeu ser "um tema muito difícil". A dona crise fê-lo partir (d)a peça homónima de Raul Brandão, de uma atualidade que não esperávamos encontrar. Em quatro atos (96 páginas da edição do Círculo de Leitores), o teatro diagnostica o humano: as sociedades em contrastes e dramas desafiam a liberdade de cada um a desejar uma vida maior. Como Oliveira nas suas obras, não dá soluções mas mostra-se, e neste caso do cinema, no poder que a imagem tem. Provoca e faz, ou não, avançar. Cheio de sombras e de gebos, é solar. Penetra o eu, e o pássaro vai decidir se sai ou não da gaiola, recorrente nos filmes a que nunca me habituarei. Não há mensagem, há uma pergunta que sai da boca do Gebo, o pai: resta saber se a gente vem a este mundo para ser feliz. O gebo, o pobre, sou eu. E quero saber agora, como no céu. Que estás tu a olhar para mim, velha cheia de sonhos irrealizados?, pergunta João, o filho, à mulher, Sofia, no take da página 51.

Isto da política está cada vez pior. Era preciso um homem de pulso. (p53.) Já não há arte (p13); não há nada que chegue à arte... ponho-me a pensar [nela] e vem-me uma tristeza (p45). A gente chega a pensar em morrer (p24). Foi tudo inútil! (p96). Como me dói o que dizes, aqui no coração (p78). Talvez a verdade nos salve (p72). Entretanto, a vida dura, nas suas pungentes urgências, impaciências, cansaços e tampas, leva a esquecer, às vezes a entreter: trabalhar e dormir. E a sacrifícios. Não há que cismar, e o tempo é dominado por outras coisas, que o coração dói. Não se acompanha mais, diz o fado.

Mas não acaba assim! Há uma sombra que pisca, e o coração sabe que não é de pedra (p74). Brandão põe em João a possibilidade de mudar; ele faz gritar por um sentido. Na peça é apresentado com estas palavras: Aí está o homem! (p38). Eu tinha boca e nunca tinha gritado (p96), espanta-se o Gebo. Ele, homem do dever (p.73), entrega-se à polícia, por um dinheiro do suor da sua contabilidade, que foi o filho a roubar. Dostoievski espreita por muitas páginas desta peça, é inegável. E Oliveira gosta muito disso. Afinal, como Claudel, no Anúncio a Maria: para que serve a vida se não for para ser dada? Fui eu que roubei (p83).

João: vocês não sabem o que é a vida. A vida! (p43). E eu, pobre voz, peço: Não entendo e quero ver... (p75). Ver! Se nós pudéssemos ver! (p77). E o que faz perguntar não cessa de amparar, vindo da boca do filho as palavras de toque, a apontar um lugar: Não procures em mim outra figura senão a que conheces...a do desespero não queiras vê-la... (p60). A promessa vem das palavras do pai: Espera que quero ver e hei-de ver! (p78).

E Sofia, mulher do filho, e que não tem este nome sem mais, quando o coração está negro como a noite (p82) - e é de noite que se pergunta (p17; 61-62) - vai dando sempre a deixa: o que eu acho é que há talvez outra coisa maior que não conheço, mas pressinto... É uma coisa que me mete medo e que me atrai. (p75). Eu, o Gebo: Outra coisa?... outra coisa maior? (p76). Eu: No céu? A sabedoria: Não, na terra. (cfr. p76)

Somos uns desgraçados. Por isso é preciso dar tempo e espaço na terra, agora, já, às estrelas que aparecem. Oliveira é seguramente uma das mais brilhantes. E, na p95, o Gebo termina o que escrevo: Ah, essas noites em que a luz se foi fazendo cada vez mais clara [refere-se ao tempo passado na prisão, de castigo a pagar o crime]... Uma hora em que entendi tudo e todas as vozes dentro de mim se sumiram com medo à minha própria voz. A gente só não se arrepende do mal que faz neste mundo.

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