Europa minimal, não obrigado!

Defendo o referendo porque é urgente que os povos entrem na equação europeia.

As oposições escolheram "a discussão fácil" do referendo para evitarem a das conclusões da cimeira? Defendo o referendo porque o divórcio entre Bruxelas e os cidadãos foi longe de mais. Isso aconteceu porque as políticas das últimas décadas têm multiplicado os factores de insegurança nas nossas sociedades. Ou seja, para o europeísmo de esquerda, o referendo é indissociável da crítica às políticas.

A Europa precisa de um novo contrato que a reconcilie com os seus cidadãos e a projecte no mundo como factor de Paz e Justiça. Isto não se faz excluindo, pela enésima vez, os povos da decisão. Aliás, a expropriação do direito de pronúncia será cobrada com juros. Em Portugal, por exemplo, fará miséria no PS e no PSD. Já está a fazer.

Mas vamos ao "difícil": o acordo alcançado reflecte o que é a Europa dos governos — uma trapalhada minimal no que importa e autoritária no dispensável. A minha crítica é por défice de Europa e não por excesso. E avanço as conclusões que gostaria que a cimeira tivesse tomado:

1. A alternativa ao defunto Tratado Constitucional é um novo Tratado Constitucional. A sua redacção seria da competência do próximo Parlamento Europeu. Emendado pelos governos e pelos parlamentos nacionais, o texto final submeter-se-ia a ratificação, de preferência por referendos. Em 2012, a União teria um texto assente num processo constituinte indiscutível. Nessa União refundada, entrava quem queria e partiria quem se sentisse mal. Os chefes de Estado mataram, por muitos anos, qualquer ideia de Constituição para a Europa. E nem ganharam tempo. Continuarão a votar com as actuais regras... até 2017!

2. O novo tratado constituinte seria conciso, identificando valores e objectivos da União, os direitos dos cidadãos, e a arquitectura e equilíbrio de poderes entre as instituições europeias e entre estas e os estados nacionais. O trabalho de simplificação legislativa seria revisto à luz das escolhas políticas do novo texto.

3. O novo tratado instituiria o princípio da separação de poderes: um sistema parlamentar dotado de iniciativa legislativa, uma comissão com poderes executivos delegados e uma justiça europeia aberta aos cidadãos, em limites a definir. Nada disto é assim. E continuará a não o ser, à luz das decisões da cimeira.

4. O novo tratado respeitaria a soberania dos estados e a dos cidadãos. Esta tensão traduzir-se-ia numa câmara onde os deputados são eleitos em função da população e num senado onde cada estado, pequeno ou grande, tem igual número de representantes. Os governos deixariam de ter o monopólio da representação dos estados. Manteriam, com os parlamentos nacionais, as prerrogativas de soberania que lhes são próprias ou partilhadas com a União, bem como o direito de decidirem as políticas a que se não desejam associar.

5. O novo tratado manteria o princípio da subsidiariedade, reequilibrando-o. Hoje, a Política Agrícola, o Mercado ou o Ambiente são domínios da UE, enquanto o emprego, a educação ou a segurança social continuam no âmbito nacional. Sobra a política monetária, onde o Banco Central Europeu se impõe ao próprio Conselho. Um novo texto consagraria outro equilíbrio. A Europa, para ser social, precisa de política económica para o emprego e a sustentabilidade do desenvolvimento, obedecendo a política monetária a tal objectivo. Nessa União, a Europa teria políticas comuns nos domínios sociais.

6. O novo tratado seria garante da convergência real das economias e dos níveis de qualidade de vida entre centro e periferias. A União passaria a ter uma política fiscal que respondesse à insuficiência orçamental.

7. O novo tratado consagraria a igualdade de direitos para quantos vivem na Europa. Não se pode continuar a distinguir entre cidadãos e menos que cidadãos, como sucede com os imigrantes. E os seus filhos teriam direito à nacionalidade do país onde nasceram.

8. Finalmente, Europa de Paz e Europa para a Paz passariam a ser sinónimos. A União deve abster-se de fazer a guerra, salvo em caso de agressão. A política externa manter-se-ia uma atribuição do Conselho, mas sob recomendação do Parlamento. Decidida por maioria, a unanimidade manter-se-ia na vertente de defesa, liberta de alianças agressivas, como é o caso da NATO. Ao invés, a PESC concentrar-se-ia na diminuição dos riscos de confrontação, na redução das emissões de CO2, na cooperação e na luta por um comércio mundial mais justo. Sem regras mínimas que promovam o trabalho com direitos, a exigência ambiental e a sobrevivência da agricultura familiar, a globalização "asiatiza" a Europa em vez de "europeizar" o mundo.

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Foram sábios os governantes que deram vida à CEE. Entretanto, a "coisa" cresceu, com virtudes e defeitos, e os cidadãos ficaram mais exigentes. Pensar que a UE pode continuar a ser obra de uma vanguarda iluminada é, pior do que uma ilusão, uma aventura que a ata aos egoísmos dos interesses que os governos representam. Eis porque defendo o referendo — porque é urgente um novo paradigma onde os povos entrem na equação europeia, e dela se possam apropriar.

Eurodeputado e dirigente do Bloco de Esquerda

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