Duas velocidades e duas dimensões

Onde tínhamos apenas duas velocidades, passaremos agora a ter dois modelos de intervenção

"A União respeita a igualdade dos Estados-membros perante os tratados, bem como a respectiva identidade nacional, reflectida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais de cada um deles". Tal foi consagrado no número dois do artigo quarto do Tratado de Lisboa. Todavia, dois acontecimentos recentes estão, pela primeira vez, a minar o princípio da igualdade dos Estados-membros da União Europeia. Por um lado, declarações de Merkel sobre o que os jornais titularam como "uma união política a várias velocidades" e, por outro, a possibilidade de ser aprovado um plano de ajuda ao sector bancário de Espanha, não precedido ou não acompanhado de um plano de ajustamento orçamental e correspondentes reformas, ditas estruturais.

No passado dia 7 de Junho, segundo os jornais, a Chanceler Merkel reconhecia a necessidade de reforçar a união política, transferindo passo a passo competências dos Estados-membros para a Europa, conferindo a esta mais poderes de controlo; esta união política não se deveria forçosamente conseguir entre os 27; com o euro, já teríamos uma Europa a duas velocidades; este dualismo seria ainda reforçado, pois "os que se encontram reunidos numa união monetária devem-se unir ainda mais".

A constatação das diferenças entre os países da zona euro e os restantes tem sido até aqui sempre atenuada. É apoiada a presença dos segundos nas reuniões da zona euro, as medidas financeiras e monetárias são sempre decididas com o seu conhecimento prévio e o primeiro grande sinal de dissensão surgiu com a recusa do Reino Unido e da República Checa em aceitarem o recente pacto orçamental. O que significa que as forças centrífugas até aqui têm sido ou insulares ou dispersas, causando ao núcleo central apenas uma certa forma de lamento. Pois bem: o que agora se passa é que o país economicamente mais forte e mais populoso da UE, apesar da ambiguidade do discurso, parece não recusar a existência de várias Europas, a continental e a insular, com alguns eventuais satélites ideológicos, ou, o que será pior, a do núcleo duro e a restante. A ambiguidade consiste, uma vez mais, em considerar a união orçamental como sinónimo de união política, quando se espera que união política seja realmente uma união assente num quadro comum de valores em que o crescimento e o emprego, insertos no código genético da União, sejam peças essenciais. Por outras palavras, estaremos cada vez mais longe do disposto no número três do artigo terceiro do Tratado de Lisboa: "A União estabelece um mercado interno. Empenha-se no desenvolvimento sustentável da Europa, assenta num crescimento económico equilibrado e na estabilidade dos preços, numa economia social de mercado altamente competitiva que tenha como meta o pleno emprego e o progresso social, e num elevado nível de protecção e de melhoramento da qualidade do ambiente". Ora, a ser correcta aquela interpretação, ou Merkel nada aprendeu sobre a Europa, ou então entende-a apenas no modo unilateral que tem sido o seu. Apesar da chegada de Hollande, Merkel em nada mudou.

O segundo facto preocupante e potencialmente discriminatório consiste no modelo que se desenha para apoio aos bancos de Espanha, com um reforço de meios financeiros, aparentemente desligados de obrigações de ajustamento orçamental e de políticas económicas deste dependentes. Sabemos que a orgulhosa Espanha iniciara um braço-de-ferro com a União, para reduzir a intervenção externa apenas ao financiamento bancário. Vemos agora que a criação de um fundo que recolha os capitais da volumosa ajuda comunitária, com autonomia suficiente para escapar à violação dos tratados que proíbem, no artigo 125, a assunção pela União de compromissos financeiros assumidos pelos Estados-membros, será, caso venha a ser aprovada, uma solução feita por medida, a que nenhum dos anteriores Estados sob intervenção teve direito. Nem a Irlanda, a principal vítima europeia da especulação imobiliária do outro lado do Atlântico, cuja economia altamente competitiva claudicou pelo volumoso esforço público para salvar os bancos de uma catástrofe de repercussões imprevisíveis, teve direito a esse tratamento.

Estes dois acontecimentos, além do simbolismo da ruptura que transportam, podem abrir uma caixa de Pandora. Cada país em dificuldade passará a ser um caso diferente, pedindo e obtendo tratamento especial.

Onde tínhamos apenas duas velocidades, passaremos agora a ter dois modelos de intervenção, consoante o tamanho do país e o grau de risco sistémico que provoca.

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