Ave Bruxelas, os que vão para o abismo te saúdam!

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O choque entre os alemães que fazem contas e todos os outros, os que estão aflitos, não tem solução possível

A Europa está à beira do abismo. O euro pode desintegrar-se. A União Europeia pode desaparecer. A economia mundial está a afundar-se.

Não faltam previsões catastrofistas na imprensa europeia - e portuguesa. O detonador do apocalipse já está identificado: as eleições gregas do próximo domingo. Tal como o momento onde, de novo, o futuro dos povos se jogará: a próxima cimeira europeia. Até se conhece a má da fita: a senhora Merkel, claro.

Da cacofonia dos alarmismos sai sempre o mesmo tipo de recomendação: para salvar o euro, a Europa, o Mundo, o que é necessário é mais federalismo, seja sob a forma de eurobonds, seja de uma união bancária, seja de "mais solidariedade", um eufemismo para defender a transferência de recursos dos países bem comportados para os mal comportados.

Compreende-se a aflição: todas as medidas para tentar estabilizar a zona euro e acudir às aflições de alguns países da periferia não fizeram regressar a normalidade. Até a recente ajuda à Espanha, que no domingo era saudada como salvífica, é tão insuficiente que Mariano Rajoy passou a semana a pedir a Bruxelas mais acção.

O que se pede tem sempre a mesma consequência: mais transferências de soberania para entidades supranacionais sobre as quais há muito pouco controlo democrático; e menos capacidade para cada povo escolher o seu próprio destino. Já sabemos qual é a situação nos países "intervencionados": uma quase suspensão da democracia. Se se prosseguir no caminho defendido por muitos, o resultado será alargar também aos países não intervencionados condicionalismos não democráticos e imposições externas.

Um dos grandes riscos da actual crise é sermos empurrados para soluções que tornarão ainda maiores e mais incontroláveis a crises futuras. É fácil perceber porquê: na origem das nossas dores está a criação de uma moeda única sem condições para que pudesse funcionar bem. Ao contrário do que por aí se diz, o nosso problema não é faltarem-nos hoje os líderes visionários que tivemos no passado. O nosso problema é esses líderes visionários - Mitterrand, Kohl - não terem dado ouvidos à única mulher que tinha os pés na terra e se opunha ao projecto do euro - Thatcher. Hoje, quando relemos os avisos que foram feitos no Reino Unido relativamente aos males intrínsecos da moeda única, espantamo-nos com a sua capacidade de previsão: está lá muito do que nos está a acontecer.

Na construção europeia, porém, nunca ninguém previu que fosse preciso fazer marcha-atrás. A arrogância triunfalista dos pais do euro era tal que, nos tratados, nem sequer está prevista a possibilidade de um país querer sair. Contudo, não há forma de continuar a olhar para os nossos problemas como se olhava no passado, isto é, acreditando que mais um "grande salto em frente" - uma expressão de conotações maoístas e muito má memória - resolverá os nossos problemas.

Há anos que venho alertando não só contra o défice democrático na EU, como contra o agravar do fosso entre as suas elites "iluminadas" e os eleitorados. Foi a arrogância dos líderes europeus e a sua insistência em desrespeitar a vontade dos povos sempre que esta os contrariava que foram fazendo com que deixasse de ser federalista e me tornasse sobretudo um céptico. É por isso que estou especialmente atento aos possíveis impactos negativos do voluntarismo de aflitos desta mal construída "União dos quatro presidentes" (Barroso, presidente da Comissão, Rompuy, do Conselho, Draghi, do BCE, e Juncker, do Eurogrupo).

Uma das coisas que me inquietam é a pressão que está a ser colocada sobre a Alemanha. Desde o início da crise que, de forma assumida ou encoberta, se exige à senhora Merkel que puxe do livro de cheques. E que, de passagem, ignore as regras dos tratados e a Constituição do seu país.

A verdade é que Merkel já assinou muitos cheques. Num artigo no New York Times, Hans-Werner Sinn, presidente do Ifo Institute, lembrava que, além dos fundos de emergência criados, o Bundesbank já tinha transferido para os países da periferia, através do BCE, o equivalente a 874 mil milhões de euros. Somava depois as compras pelo BCE de dívida soberana nos mercados secundários e as outras contribuições da Alemanha, para concluir que um default da Grécia, da Irlanda, de Portugal, de Espanha e de Itália faria perder ao seu país 899 mil milhões, o equivalente a 26 por cento do PIB germânico. Dirigindo-se a Obama, um dos líderes que mais têm pressionado Merkel, aquele professor da Universidade de Munique concluía: "Será que os Estados Unidos alguma vez incorreram num risco semelhante para ajudarem outros países?"

O choque entre os alemães que fazem contas (a chanceler lembrou ontem, no Bundestag, que a saúde financeira do seu país não é infinita) e todos os outros que estão sobretudo aflitos não parece ter fácil resolução. Por duas razões, uma política e a outra económica.

A razão política devia entrar pelos olhos dentro de quem quer que tenha seguido os últimos resultados eleitorais: a Alemanha é um dos poucos estados do Centro e Norte da Europa onde ainda não emergiu uma força eleitoral anti-UE, de extrema-direita ou não. Como lembrava Gideon Rachman no Financial Times, isso já sucedeu em França (votações recorde da Frente Nacional), na Bélgica, na Holanda (direita anti-europeia à frente nas sondagens), na Dinamarca, na Suécia (extrema-direita elegeu 20 deputados), na Finlândia, na Hungria e na Áustria. Se na Alemanha tivesse aparecido um movimento político equivalente aos que singraram nestes países, já todos estaríamos aos gritos. Não estamos porque a CDU/CSU de Merkel tem conseguido conter essas tentações. Reforçar a ideia de que são os contribuintes alemães que pagam a conta numa "união de transferências" é criar o caldo de cultura para a emergência de extremismos que, esses sim, destruiriam a Europa num ápice.

E aqui chegamos à razão económica: todas as soluções propostas para "salvar o euro" implicam aumentar o risco e os custos da Alemanha no curto prazo (é o que sucederá sempre com qualquer fórmula de mutualização da dívida), e isso é impensável para Berlim sem controlo dos orçamentos dos Estados que vão gastar o dinheiro alemão. Como dizia um político holandês citado por Rachman, "não nos podem querer impor uma união bancária quando a França acaba de reduzir a idade da reforma para 60 anos e nós a subimos para 67". Mais: no médio/longo prazo, como depressa se concluirá e como já escrevia num documento de 1977 da antiga CEE destinado a preparar a união monetária, a moeda única exigirá uma UE com um orçamento equivalente a sete a dez por cento do PIB dos países-membros. Só assim se corrigiriam as assimetrias de desenvolvimento.

Como não é possível imaginar que os eleitorados de países como a Alemanha possam alguma vez aceitar multiplicar por cinco ou por seis a sua contribuição para os pobres da União, a conjugação entre as razões económicas e as razões políticas mostra-nos como insistir numa via de mais integração pode ajudar a apagar o fogo hoje, mas com o risco de criar um desastre muito maior num futuro que é já amanhã.

Há ainda um pano de fundo em toda a actual crise que ninguém refere: ela é apenas o primeiro estertor de um continente que perdeu o seu lugar no palco do Mundo e que vai ter de se habituar a isso. Mais: a hegemonia económica da Europa nas últimas décadas permitiu-lhe beneficiar da riqueza que sustentou um generosíssimo Estado Social. Também isso acabou. Só espero que a Europa consiga adaptar-se às novas condições de relativa escassez sem voltar a mergulhar nos seus dramas eternos. Mas isso é outra discussão.

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