A "performance" outra vez

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NICHOLAS HLODO 2011!/PERFORMANCE AT THE NATIONAL MUSEUM OF ART, ARCHITECTURE AND DESIGN, OSLO/COURTESY OF STEVENSON, CAPE TOWN AND JOHANNESBURG

Depois de um tempo de relativo apaziguamento por parte dos potenciais artistas performáticos, eles voltam, reclamando a urgência da intervenção.

O"Wappening" é com certeza a forma actual mais radical da "performance". Um dos seus autores é Lee Walton e num dos seus últimos emails enviados para a sua rede de contactos dizia: "Neste preciso momento, um homem está preso num banco do parque de Union Square Park em S. Francisco. Para ser libertado encontre a mulher com um lenço vermelho no Atlas Café em Brooklyn. Ela é a única pessoa que tem em seu poder a combinação do cadeado e dar-lha-á. Consegue encontrar a maneira de libertar este homem? Ele tem fome e quer ir para sua casa". O que é manifestamente importante neste tipo de "performance" é a capacidade de, utilizando a tecnologia de comunicação mais actual, reinventar o processo da "performance" no que ela tem de mais matricial: a imprevisibilidade, a intervenção em espaços exteriores aos espaços tradicionais do espectáculo, a capacidade de convocar um público inesperado mas disponível. Sendo assim, significa que esta é uma forma de actualizar a "performance" naquilo que era a sua razão de ser: intervenção pública com carácter de urgência, que se se proclama como arte e sobre a qual se escreveram múltiplos manifestos desde, pelo menos, a primeira década do século XX.

Depois de momentos particularmente marcantes na história da cultura visual, da cultura do corpo e da cultura política do séc. XX, albergando múltiplas contradições com as urgências do dadaísmo, do futurismo, da Judson Church em Nova Iorque, dos artistas iconoclastas de Viena da década de setenta, dos trabalhos iniciais que duravam vários dias de Bob Wilson, das obras de Joseph Beuys - "Como Explicar Desenhos a uma Lebre Morta" (1965), em que o artista se passeia pela galeria com o rosto recoberto de mel e ouro, carregando no colo uma lebre morta com quem fala, ou "Eu Amo a América e a América Ama-me" (1974), "performance" em que esteve embrulhado em feltro numa sala com um coiote, durante cinco dias - e de Jan Fabre - com a peça memorável, "Le Pouvoir des Folies Théâtrales", que pôde ser vista em Lisboa em 1986 -, eis que, depois de um tempo de relativo apaziguamento por parte dos potenciais artistas performáticos, eles voltam, reclamando a urgência da intervenção. Dir-se-á que, na verdade, nunca estiveram ausentes e que o facto de a partir da década de 80 a expressão "artes performativas", associada muitas vezes às artes do corpo, ter entrado no vocabulário da produção para substituir o termo "artes do palco", demasiado associado ao mercado do espectáculo, o termo apareceu essencialmente para designar as expressões artísticas que se definem pelo facto de requererem a presença do corpo em acção e ao vivo, para que existam enquanto artes e que o interveniente possa reivindicar uma maior versatilidade de comportamento em cena, ultrapassando a separação entre actor, cantor e bailarino e até entre artista visual e músico. Neste contexto o performer seria pois uma forma mais elaborada de actuação, mais híbrida também, como passaram a ser muitas das obras criadas desde então.

Falou-se da "performance" como uma etapa depois da coreografia e até se inventaram festivais e associações internacionais de "performances", num registo em que a "performance" surge mais como novo género artístico do que como atitude, seja ela política ou artística. A "performance" que surgiu como acto de urgência, de irrupção e até estimulou a criação de novos estudos disciplinares, surge hoje sustentada e apetrechada com um sólido "corpus" teórico onde pontuam a psicanálise, a fenomenologia, os estudos feministas, as teorias cognitivas e nomes como Barthes, Kaprov, Spivak, dos estudos de género aos estudos pós-coloniais. E no entanto surge muitas das vezes como ilustração deste "corpus", o que é muito menos interessante do que já foi em contextos quer americanos na década de 60 que tinham como pano de fundo a guerra do Vietname, as lutas contra o racismo, os movimentos de igualdade feminina, quer na Europa, com Yves Klein e os seus "happenings" contra a arte institucional nas galerias de Paris, ou mesmo em Lisboa de 1974 com Vespeira nos Restauradores criando "A arte fascista faz mal à vista". De onde vem, pois, este renascimento da "performance", concretizada em exemplos, muitos deles de duvidosa eficácia, tentando alguns disfarçar a ausência de pertinência estética ao dizerem-se obras híbridas? Não será pelo facto de muitas delas não serem tão espontâneas, tão conformes ao "happening", como parecia ser requisito destas manifestações de arte e política? Por exemplo, uma das obras ícones, "18 Happenings in 6 parts", de Allan Kaprow, de 1964, estava escrita com um guião que lhe permitiu ser reposta num contexto de história da "performance". Serão várias as razões para este surgimento, algumas das quais pertinentes: a necessidade de questionar se a arte tem algum poder - poder de intervir socialmente de forma reclamativa e/ou programática. Num momento histórico em que o mercado global abarcou todas as expressões artísticas, a dimensão de uma obra que se proclama ser antes de mais uma atitude: ser de acessibilidade gratuita, como acontece na maioria das "performances", intervir no espaço público problematizando a cidade e até o urbanismo, como é o excelente exemplo de Lee Walton, exige uma metodologia e tempo de resposta de difícil realização. A capacidade de responder à super-abundância de imagens e à velocidade da comunicação não será pela resposta rápida - que ficará aquém das velocidades da informação actual -, mas, pelo contrário, por um tempo mais durável e até, em certos casos, no limite da lentidão. Acresce ainda que depois da criação de uma entidade corpo-glorioso na década de 80, de um corpo martirizado e depois metamorfoseado em "cyborg" em muita da produção dos media dos últimos vinte anos, a possibilidade de o corpo vir a assumir-se como depositário biográfico e corpo político, tem muita razão de ser.

A este propósito, por exemplo, as performances do artista sul-africano Nicholas Hlobo são excelentes demonstrações do poder mínimo que o corpo tem. O artista senta-se numa almofada redonda com o formato de um ninho de pássaro, coloca um barrete na cabeça de onde saem extensões que têm nas pontas ventosas de pano bordado coladas à parede da galeria. Fica assim sentado por algum tempo, em posição meditativa. Depois levanta-se, executa pequenos movimentos de extensão do corpo e depois de arrancar as ventosas da parede arrasta-as por entre o público. Esta performance teve por título "Thoba, utsale umnxeba", em língua Xhosa, sobre ambiguidade sexual, mas sem tradução possível. O corpo é em Hlobo glorioso, orgulhoso e voluptuoso. E os materiais que utiliza - seda, borracha, organza - contribuem e reforçam esta voluptuosidade, estendem a sensualidade das obras do artista, incluindo o seu corpo em acto de "performance". Neste sentido o corpo já não é só um campo de batalha mas é um corpo poderoso, que pode intervir, que tem o poder de fazer a ponte entre a comunidade de origem de Hlobo - os Xhosa - e a comunidade sul-africana e a comunidade internacional. Tudo é físico neste tipo de "performances"; físico e com uma plasticidade que dá às "performances" de Hlobo a capacidade de questionarem o próprio poder do corpo na cultura artística contemporânea. E só o facto de a questionar, de a problematizar, de produzir alguma fissura no sistema actual da arte é em si um acto necessário. Finalmente, há que considerar também como a "performance" se deslocou com alguma eficácia para o espaço da elocução do discurso crítico e de questionamento. Na retaguarda desta "performance" de enorme eficácia e de luminosidade estão as aulas do filósofo Gilles Deleuze na Universidade de Vincennes nos anos 70 e 80 cercado por centenas de estudantes ou, mais recentemente, os discursos de Ken Robinson sobre criatividade. O discurso como crítica e no formato da "performance" tem uma urgência tão radical quanto o foram as obras de Marina Abramovic ou de Joseph Beuys ou de Steve Paxton no seu tempo.

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