Uma lenda para os ouvidos

É um dos acontecimentos musicais da temporada. Uma das mais lendárias orquestras do mundo apresenta-se em Lisboa. No programa, obras de Sophia Gubaidulina e Anton Bruckner.

A Orquestra Filarmónica de Nova Iorque apresenta-se hoje, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, sob a direcção do seu director artístico, Kurt Masur, no âmbito do ciclo Grandes Orquestras Mundiais organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian. No programa inclui obras de Sophia Gubaidulina e Anton Bruckner. Estas simples frases informativas contêm elementos suficientes para que qualquer melómano avisado tenha plena consciência de que vai ser, sem dúvida nenhuma, um dos acontecimentos musicais da temporada.

Mas, para aqueles que têm a sorte de ainda se deixar surpreender, aqui vão algumas pistas para entender o que foi dito. A Orquestra Filarmónica de Nova Iorque é a mais antiga dos Estados Unidos, tendo atrás de si uma história lendária onde se contam como protagonistas Gustav Mahler (que dirigiu a formação entre 1909 e 1911), Willem Mengelberg (1922-30), Arturo Toscanini (1928-36), John Barbirolli (1936-41), Bruno Walter (1943-47), Dimitri Mitropoulos (1949-58), Leonard Bernstein (1958-69) e Pierre Boulez (1971-77), para além de Artur Rodzinski, Leopold Stokowski, George Szell e Zubin Mehta, todos eles nomes míticos da música do século XX. Foi fundada em 1842, tendo sido uma das primeiras a tentar fazer chegar os seus concertos ao maior número de pessoas. Fez a sua primeira digressão americana em 1882 e a sua primeira visita a Europa em 1930, dirigida por Toscanini. Desde 1922, usou a rádio como meio privilegiado para a difusão da sua actividade, e, desde 1958, começou a gravar programas para a televisão. Em Abril de 1999 atingiu o seu concerto número 13 mil e apresenta uma média de 200 concertos por temporada.

A vista da Filarmónica de Nova Iorque a Lisboa está integrada numa tournée ibérica que é entendida pelo seu maestro titular como uma consequência da obrigação que a orquestra tem de ampliar ao máximo o número dos seus ouvintes e assim fazer chegar através da música uma mensagem de paz e humanismo. Tal intenção pode ser interpretada como mais uma frase para pendurar na página web da orquestra, mas, se tivermos em conta a formação do regente, ela aparece-nos como consequência de uma maneira particular de entender a música.

Kurt Masur, um dos nomes de referência da prática da direcção de orquestra na actualidade, é um daqueles músicos representativos da ética de viver a música que caracterizou o melhor da tradição musical da Europa Central. Nela podemos destacar, por um lado, uma interpretação fundamentalmente expressiva e verdadeira e, por outro, um compromisso com o público que leva a entender cada concerto como um momento único e sempre renovado.

A linhagem de Masur remonta a Félix Mendelssohn, o fundador há século e meio do Conservatório de Leipzig. Foi aí que fez uma parte da sua formação e desenvolveu intensa actividade profissional desde 1970. Nesse ano foi nomeado maestro titular da Orquestra da Gewandhaus, lugar que ocupou até 1999, e cinco anos depois começou a ensinar no seu Conservatório. Masur iniciou a sua experiência americana em 1976, quando foi nomeado titular da Orquestra Sinfónica de Dallas, pelo que à sua chegada à Filarmónica de Nova Iorque, em 1991, já estava familiarizado com o tipo de gestão das orquestras nos Estados Unidos.

Na próxima temporada reatará a sua relação com Europa como titular da Orquestra Filarmónica de Londres.O programa do concerto na Gulbenkian inclui a "Sinfonia nº 7" de Bruckner, composta entre 1881 e 1883 e cuja primeira audição orquestral teve lugar em 1884, precisamente pela Orquestra da Gewandhaus de Leipzig, e ainda a primeira audição portuguesa de "Two paths" (1999) para duas violas e orquestra de Gubaidulina.

Esta obra foi uma encomenda de Tomoko Masur, esposa de Kurt Masur, que foi, no passado, viola da Orquestra Sinfónica Brasileira de Rio de Janeiro. Foi estreada no auditório da orquestra, o Avery Fisher Hall, e será apresentada por vez primeira em Europa durante esta digressão. "Two paths" foi escrita para Cynthia Phelps e Rebecca Young, violas da Filarmónica de Nova Iorque que serão as suas intérpretes no concerto desta noite.

Phelps é Viola Principal da orquestra desde 1992, mas o seu curriculum inclui apresentações como solista em diversas capitais europeias e americanas e colaborações com o Zuckerman and Friends Ensemble e o Guarneri String Quartet. Young ingressou na Filarmónica em 1986, sendo nessa altura a intérprete mais nova do agrupamento. Desde 1991 é Viola Principal Associada da orquestra. Tem colaborado, entre outros, com Yo-Yo Ma, Emanuel Ax, Pamela Frank e Edgar Meyer na gravação do quinteto de Schubert "A Truta", recentemente editado pela Sony. Ambas foram as intérpretes da primeira audição da obra no passado mês de Abril.

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