Quem fica por trás da câmara

Faz fotografia de moda e design, capas de discos e vídeo-clips. No meio disto, o que revela Pedro Cláudio? Um grande talento, sem dúvida, e qualquer coisa mais. Por trás da câmara, encontra nos modelos esboços de personagens, aos cenários devolve-lhes a acção. Às escondidas, o seu trabalho é o rascunho de um filme.

Se existe uma característica entre os fotógrafos que os confunde uns com os outros é a dificuldade de se relacionarem com a sua própria imagem. Existem excepções, mas Pedro Cláudio não é uma delas. De resto, os fotógrafos que se auto-retratam parecem fazer parte de uma outra classe. Não vale a pena complicar este assunto porque o fotógrafo é, para todos os efeitos, aquele que fica por trás da câmara. Domínio absoluto, portanto, e completa invisibilidade. Uma imagem do livro de fotografias "Map", lançado recentemente a propósito da 13ª edição da Moda Lisboa, faz no entanto tremer essa segurança. Sobre uma cama encostada à parede, no quarto de uma pensão, um braço estendido, em repouso. A fotografia não mereceria grandes comentários não fosse o detalhe de metade dela ser branca, e o resto do corpo a que o braço está ligado ficar invisível. O corpo está lá, sabemo-lo, e não se esconde, também o sabemos, mas é impossível vê-lo. A saturação de luz excluiu-o e a sua matéria desagregou-se na figuração. Esta fotografia permite-nos duas conclusões. A primeira é que se a fotografia revela uma verdade, ela não é necessariamente real e não está directamente relacionada com o que é observado. A segunda conclusão é mais conspirativa, mas igualmente reveladora. Se o fotógrafo, pela ordem natural das coisas, se esconde por trás da máquina, é também aquele que mais rapidamente se deixa apanhar no seu tempo de exposição. Curiosamente, quando perguntámos a Pedro Cláudio - que não queria ser fotografado - sobre a dificuldade de alguém, que produz as imagens dos outros, em conceber a sua própria imagem, a não-resposta que deu coincidiu com o que atrás foi referido: "Tenho feito tanta coisa, em campos tão diferentes e em direcções tão diferentes, que é difícil cingir-me apenas às pessoas que fotografo - aos trabalhos de moda, enfim, que incluem pessoas. Sinto que uma grande fatia do meu trabalho é ocupada por imagens sem a presença humana, e dirijo-me cada vez mais nessa direcção".A particularidade desta postura em relação ao trabalho que desenvolve é ainda mais inesperada pelo facto de Pedro Cláudio, 34 anos, originário de Torres Vedras, não ser um fotógrafo assumidamente "autor" (como aqueles que fazem exposições e são reconhecidos não por aquilo que fotografam, mas por serem eles a fotografar "aquilo"). Pedro Cláudio é um dos mais respeitados fotógrafos no circuito da moda mas assinala: "Considero-me um fotógrafo, que também faz fotografia de moda", acrescentando que prefere ser considerado um director artístico, por considerar a fotografia apenas um meio, tal como o vídeo ou o design gráfico. "O mais importante são as ideias".Foi no Festival Internacional de Fotografia de Moda de 94, em que participou com Inês Gonçalves, que definitivamente optou por não se tornar apenas fotógrafo de moda. Surgiu então uma possibilidade concreta de se instalar em Paris e entrar para o circuito: "Não gostei do ambiente. Apercebi-me de que antes de sentir as coisas uma pessoa acaba por se deixar levar. Um fotógrafo de moda que quer ser reconhecido tem uma vida de cão, passa o tempo a bater às portas". Nesse "aeroporto de interesses", que é como considera o circuito internacional de moda, perde-se o tempo a fazer contactos, em vida social, "e já não se está a fazer fotografia, gastam-se as energias a lutar por uma ascensão na carreira". Ao voltar de Paris, passou a insistir em trabalhos não só exteriores à fotografia de moda como à própria fotografia. Assinou algumas capas de discos e começou a realizar vídeo-clips. Num futuro ainda indefinido, aguarda a possibilidade de vir a fazer cinema. "Aos domingos sentava-me invariavelmente com a minha mãe a ver o Cineclube e foram uma série de filmes, mas essencialmente os do Antonioni, e "A Aventura" em especial, que me acenderam o interesse pelas artes visuais. E quando falo em artes visuais falo em quase tudo. Eu relacionava aquelas imagens também com fotografia, música, pintura, escultura. Através do Antonioni, interessei-me por muita coisa, deixei as letras e passei a estudar artes visuais".Surgiu o curso na ESBAL: "Fiquei muito desiludido ao conhecer o panorama galerístico e artístico. A pintura perdeu muito a capacidade de chegar às pessoas. Apesar de ser cada vez mais acessível, há um problema de comunicação qualquer. A comunicação por outros meios, como o editorial, também me apaixonou. Decidi-me pelo design de comunicação, que parou a partir do momento em que descobri a fotografia e tive imensas surpresas". Nos anos 80 iniciou a carreira de fotógrafo: "Houve um movimento que fez renascer a fotografia de moda, surgiram boas oportunidades para ter uma certa liberdade criativa e ao mesmo tempo viver disso". As diversas actividades ligadas à fotografia, no trabalho de Pedro Cláudio, caracterizam-se por uma apropriação temática muito personalizada. Um catálogo de artigos de design, como é o do ICEP, que assinou em colaboração com Marco Santos, revela essa tendência para sugerir enredos, criar sentidos por associação de imagens, intercalando fotografias de objectos com retratos da Natureza, numa encenação em que o trabalho se "desvia" da promoção dos objectos para fazer parte de um universo puramente fotográfico: "Deixo que seja a peça a fazer a fotografia quando a considero muito boa; de outras vezes trabalho com outro tipo de envolvimento, tentando elevar ao máximo as capacidades estéticas do objecto. Não trabalhamos sempre com produtos perfeitos em termos de design. Ao mesmo tempo, tentamos fazer um trabalho que acaba por ser de agência de publicidade, mas que tenta manter certos valores da publicidade de fora". Essa apropriação é absoluta em "Map", o já citado catálogo da Moda Lisboa (segundo volume de uma colecção iniciada por Inês Gonçalves para a colecção de Inverno 99/2000), numa espécie de diário de uma viagem a Marrocos: "A ideia era ter uma personagem em viagem, reflectindo mais o seu interior do que relatar o que estava a ver". O que é então "Map"? "Não é uma canção, não é um filme, não é uma novela, não é um portfólio, mas é um conjunto de fotografias que deixam uma sensação no fim e não é preciso dar muitos nomes a isso". Ou seja, mais do que a qualidade de cada uma das fotografias, "Map" dá antes relevo a um percurso, no limite, a uma história sem palavras. Que papel sobra então para a moda, para a roupa? Pedro Cláudio sugere a importância do guarda-roupa num filme, e a forma como os figurinos nele surgem: "Tentei que as peças se coadunassem com a personagem que imaginei; as outras peças, que não se coadunavam, tentei relacioná-las com algo da paisagem. Funcionou como guarda-roupa de um filme". (Curiosamente, também há uma banda sonora: é a música de Model 500, que o acompanhou durante a viagem).Este método, em que a figuração do vestuário chega a desaparecer, Pedro Cláudio explica-o pela necessidade da moda se relacionar com tudo aquilo que a rodeia: "No fundo é isso que a alimenta".É uma estranha associação, jogar com a perenidade das paisagens, das naturezas mortas, de objectos e cenários do quotidiano, seja num registo de foto-reportagem ou de criação de atmosferas oníricas, e, ao mesmo tempo, conotar tudo isso com a dimensão transitória da moda: "A moda leva à partida esse selo, e talvez por se tratar da beleza isso seja mais sensível, mas todas as actividades acabam por ter essa característica e cada vez existe mais esse tipo de incerteza e de mudança contínua".Como é possível então, num trabalho com intenções comerciais, divagar para fora do "produto" que se promove? É como saber até onde se pode esticar a corda: "[Tem a ver com] a consciência do que é comercial e não-comercial, do que é possível fazer sem problemas e até onde se quer arriscar", explica Pedro Cláudio. De resto, essa "dispersão" não é intencional, conceptualizada. Surge de acordo com as condições e os estímulos em que o trabalho se processa: "Descobre-se mais quando se está a fotografar, é um compromisso com uma lógica de quase fotojornalismo. [Trata-se de] uma captação de todas as coisas que acontecem". Para Pedro Cláudio, as imposições que cada trabalho implica não devem "destruir o que pode ser um belíssimo realismo mágico". No que respeita aos vídeo-clips que tem feito nos últimos três anos (Né Ladeiras, Carlos Bica, Maria João, 7ª Legião, Sérgio Godinho, Camané, Belle Chase Hotel e o documentário musical "Os Primos", com os Despe & Siga), também acredita na liberdade e no sentido de risco, dando o exemplo da editora NorteSul: "É a que melhores resultados tem tido do meu trabalho, pela carta branca que me deu sempre". A confiança nos artistas e na qualidade da sua música também é importante: "Há uma coisa que não gostaria que me acontecesse, fazer o vídeo de uma música de que não gosto. Estaria a defraudar-me a mim e ao artista. Se estou a fazer alguma coisa, tenho de gostar, no mínimo, de alguma energia que pode vir da música e da pessoa, que me liga de forma mais emocional ao projecto. Até porque a canção acaba por ser o guião". E dá o exemplo de JP Simões, o vocalista dos Belle Chase, protagonista do vídeo "transformista" de "Fossa Nova", que considera o melhor actor com quem alguma vez trabalhou.O cinema continua a ser a sua preferência... adiada. Admite que não acontecerá a curto prazo, e enquanto aguarda por "alguma coisa de palpável", tem desenvolvido projectos que o vão formando, como os vídeos-instalação "1" e "Sometimes it is", para a mostra de design Experimenta 99, assim como alguns vídeos institucionais. Admite que se lhe dessem já dinheiro para um filme, "largava tudo o que estava a fazer". E caso isso não aconteça? "Nem que seja cinema caseiro, basta ter uma câmara. Estou mais preocupado por enquanto em fazer algumas curtas e médias metragens de produção própria".Tem sido estranho o caminho que tomou para um dia vir a fazer cinema, é Pedro Cláudio que o admite. Acrescente-se que é estranha a carreira que escolheu, tendo em conta que acima de tudo se expõe a si próprio. É como no "Blow-Up" de Antonioni. Um fotógrafo investiga uma fotografia que tirou, amplia-a até chegar ao mistério que se esconde lá dentro e, no final, a revelação que conseguiu foi descobrir-se dentro de um filme. As fotografias de Pedro Cláudio andam à procura desse filme.

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