Portugal no século XX

1. Em primeiro lugar, aquilo que eu suponho ser um erro - vale mais que a questão fique arrumada logo de entrada. Estou a falar do título do livro de Hermínio Martins, agora publicado pela Imprensa de Ciências Sociais: "Classe, Status e Poder". Abrimos o volume e encontramos quatro magníficos ensaios sobre "O Estado Novo", "A oposição em Portugal", "O colapso da I República", e, por fim, "Classe, Status e Poder em Portugal" (ensaio redigido em 1971, com algumas notas teóricas de 98). Isto é, temos uma análise do fascismo português, daqueles que contra ele lutaram, da situação que conduziu ao seu aparecimento e da estrutura da sociedade portuguesa legada por Salazar (retrato arrepiante). De certo modo, e numa perspectiva específica, uma das melhores introduções ao Portugal do século XX anterior ao 25 de Abril.Escolhendo um título de recorte teórico e abstracto, Hermínio Martins, ou os seus editores, não tiveram em conta o facto de haver nos portugueses um gosto acentuado pela abordagem histórica e uma persistente desconfiança em relação a tudo o que possa parecer "abstracto". Tratando-se de um autor importante, cuja obra deve ser revelada aos leitores de língua portuguesa, creio que houve aqui um erro estratégico.2. Em segundo lugar, a lenda. Se pegarmos no prefácio de João Bettencourt da Câmara ao livro anterior de Hermínio Martins, "Hegel, Texas e Outros Ensaios de Teoria Social", ficamos a saber que Hermínio Martins nasceu em Lourenço Marques, em 1934, e estudou no Liceu de Salazar até ao 7º ano da época; e que faz parte de uma geração que conta entre os nomes conhecidos o cineasta Ruy Guerra, os filósofos Fernando Gil e José Gil, o ensaísta Eugénio Lisboa, a professora universitária Maria de Lurdes Cortez e o poeta recém-desaparecido Rui Knopli. Quase todos eles sentiram necessidade (ou tiveram a possibilidade) de trabalhar fora de Portugal, uma parte em Inglaterra, outra em França. Hermínio Martins chegou a Inglaterra em 52 e licenciou-se em Sociologia (na área de Economia) pela London School of Economics. Trabalhou com Ernest Gellner (essa personagem aguerrida e fascinante, de quem saiu há pouco um maravilhoso livro em forma de testamento: "Language and Solitude - Wittgesntein, Malinowski and the Habsburg Dilemma"), foi leccionar para a Universidade de Leeds, criou uma reputação invejável e instalou-se na Universidade de Oxford, onde ensina e investiga há mais de 20 anos. Todos os que conviveram um pouco com este brilhante grupo de "ex-moçambicanos" portugueses ouviram falar de Hermínio Martins com uma enorme ternura e uma espécie de aura.Houve durante muito tempo a questão política: dado o "ódio visceral" que sempre mostrou pelo regime de Salazar (para utilizarmos uma expressão de Braga de Cruz em comentário a um dos ensaios agora reunidos), Hermínio Martins só pôde estabelecer um convívio mais estreito com a universidade portuguesa depois de 74. Ultimamente, sobretudo pela intervenção de um sempre atento Bragança de Miranda, tem realizado seminários na Universidade Nova de Lisboa.Não publica muito - os seus textos são nítidos, certeiros e sucintos. Em Portugal, houve um esforço com a edição de "Hegel, Texas e Outros Ensaios de Teoria Social", mas os resultados não estiveram à altura da importância do acontecimento. Anteriormente publicara uma belíssima introdução, "Tristes Durécs", à edição portuguesa do livro de Rui Feijó e Pina Cabral, "A Morte no Portugal Contemporâneo". A revista "Episteme - Revista de Epistemologia e História das Ciências e das Técnicas da Universidade Técnica de Lisboa", dirigida por João Bettencourt da Câmara, tem vindo a publicar, nos seus dois primeiros números, um estudo de Hermínio Martins intitulado "Risco, Incerteza e Escatologia - Reflexões sobre o 'experimentum mundi' tecnológico em curso". E, mais recentemente, a nova colecção do Instituto das Ciências Sociais da Universidade de Lisboa lançou este "Classe, Status e Poder".3. Para quem está longe de ser um especialista nestas matérias (é o meu caso), a leitura de um livro como este é um verdadeiro encantamento. Isso deve-se, julgo, às qualidades quase invisíveis, mas sempre decisivas, da escrita e do modo de exposição de Hermínio Martins. Vou tentar dar uma ideia, forçosamente pálida, de como as coisas se passam. Por um lado, Hermínio Martins deixa-nos a sensação de ter lido tudo sobre as questões (é o que sucede, por exemplo, no notabilíssimo ensaio sobre Kuhn, publicado em "Hegel, Texas"). Mas deixa-nos também a sensação, o que é extremamente agradável, que leu tudo sem esforço, que deixou que o tempo fosse apagando o secundário e que conservou apenas o essencial - para nós.Em segundo lugar, toda a complexidade de uma situação vem depositar-se de um modo elegante e siderante nas classificações que Hermínio Martins utiliza. É a marca do sociólogo em relação ao material histórico. Mas, em terceiro lugar, o modo como Hermínio Martins combina os esquemas mais teoricamente elaborados com uma minuciosa atenção ao concreto chega a extremos de quase magia.4. Se lermos com atenção o texto sobre o Estado Novo, encontramos a resposta analítica e ponderada à pergunta que atravessa regularmente os debates sobre a história portuguesa do século XX: o salazarismo foi, ou não, um regime fascista? Os políticos, por motivos que têm a ver com razões estratégicas, dizem que sim. Alguns historiadores tendem a multiplicar os matizes e as distinções semânticas. Hermínio Martins, analisando todas as componentes sociais e ideológicas do regime e a sua rearticulação no interior da dinâmica imposta pela figura de Salazar, mostra-nos a especificidade dos cinco grupos que se incorporam no movimento integralista: a velha guarda integralista (com manifestas e impagáveis nostalgias monárquicas), os fascistas-integralistas, os nacionais-sindicalistas (que defendiam "a violência sistemática como instrumento do processo revolucionário e falavam livremente de 'burguesia' e de 'capitalismo' como os principais símbolos a combater"), os integralistas mais jovens recrutados pelo novo regime (donde vieram Theotónio Pereira e Marcello Caetano) e os neo-integralistas. A multiplicidade de correntes e a clivagem virtual entre monarquia e república poderiam ter introduzido factores de instabilização num 28 de Maio de configuração algo incerta. O percurso de Salazar (com o sucesso do saneamento das finanças, a demarcação em relação à ditadura militar, as ambiguidades da Constituição proposta ou a escolha da palavra "corporativismo" para uma prudente autodesignação do regime) permite assegurar os equilíbrios necessários e garantir uma especificidade ideológica, em que, a par da criação de instituições da matriz fascista (como a Legião Portuguesa ou a Mocidade Portuguesa), se recusaram outros aspectos reivindicados pelo nacional-sindicalismo: um poder carismático, um movimento de massas, mecanismos de recrutamento político.Como diz, com algum silencioso humor, Hermínio Martins, o Portugal de Salazar foi até um caso bem sucedido no campo da economia do terror: "Pode haver um coeficiente óptimo de terror que interesse a totalidade da população sem que seja necessário recorrer a um extermínio em larga escala, mas evidenciando e propagandeando ao máximo, com crueldade, a realidade desta situação. O regime português conseguiu um resultado óptimo deste género: com um número exíguo de assassínios políticos e prisões (entre 1948 e 1959 a taxa anual de 'casos' políticos registados pela PIDE, conjuntamente com os tribunais políticos, oscilou entre 700 e 2000), conseguiu obter a atomização política da população em causa e a paralisia da oposição da elite" (pág. 45).5. O notável ensaio "Classe, Status e Poder em Portugal" começa com uma afirmação já famosa: "Portugal não é uma sociedade 'plural'. Um estudo comparativo das sociedades europeias mostra que Portugal se caracteriza por um grau invulgar de homogeneidade nacional. Tal descoberta é válida se tivermos em conta a homogeneidade racial, étnica, linguística, religiosa ou cultural e é igualmente válida quando comparamos Portugal com outras sociedades, pequenas ou grandes, da Europa mediterrânica ou do Noroeste" (pág. 99).Contudo, Hermínio Martins irá defender mais adiante a tese de que existem "sistemas de estratificação com base territorial", como se verifica na "mistura" ocupacional da força do trabalho (relação entre os sectores primário, secundário e terciário) ou na estrutura de oportunidades de acesso à educação. Daí que se possa falar nos "vários 'países' que Portugal é" (pág. 119).É, foi ou continuará a ser? O nosso espírito masoquista leva-nos por vezes a esquecer que o retrato de Portugal que aqui se traça pertence a 1971. E é preciso não ignorar que, como sublinha António Barreto nesse livro imprescindível que é "Tempo de Mudança" (Relógio d'Água), "as transformações na sociedade portuguesa nestas últimas três décadas foram tão profundas e rápidas que é por vezes difícil de acreditar que se tenham produzido em menos do que o espaço de uma geração". Por isso o livro de Hermínio Martins encontra a sua sequência natural (com estranhas e maravilhosas peripécias pelo meio) na leitura da obra e dos estudos organizados por António Barreto, ou do estimulante conjunto de ensaios reunidos por Leite Viegas e Firmino da Costa em "Portugal, Que Modernidade?" (Celta).

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