O maior animador vivo do mundo foi à praia

No mundo da animação, não há ninguém acima do co-fundador da Pixar, John Lasseter. Mas quando se fala com este homem ele diz que a sua maior fonte de inspiração foi Hayao Miyazaki, o desenhador japonês de animação em 2D que insiste em usar imagens desenhadas à mão. "Ele é o maior animador vivo do mundo", diz Lasseter sobre Miyazaki, que é indiscutivelmente o produtor de cinema mais bem sucedido do Japão. O seu filme vencedor de um Óscar de 2001, "A Viagem de Chihiro", acerca de uma rapariga de dez anos presa num mundo de espíritos, mantém-se como o maior sucesso de bilheteira do país, e a Studio Ghibli, a empresa que fundou nos arredores de Tóquio, transformou-se numa espécie de monumento (existe até um museu muito popular que homenageia o seu trabalho).
Enquanto Lasseter, na Pixar, se lançou para o futuro com a animação por computador em 3D, Miyazaki preservou a tradição da animação em 2D desenhada à mão. Agora que a Pixar faz parte da Disney, Lasseter usou a sua influência para conseguir que o estúdio distribuísse nos EUA o mais recente filme de Miyazaki, "Ponyo à Beira-Mar", adaptação livre de "A Pequena Sereia" de Hans Christian Andersen sobre uma jovem peixinho dourado que aspira a tornar-se humana.
Miyazaki, 68 anos, um senhor grisalho e de aspecto tímido que usa uns óculos de armação grossa e sorri constantemente durante as entrevistas, é mais expressivo do que a maioria dos japoneses. Admite que adora as histórias europeias, em especial quando se trata de histórias para crianças.
"Vivendo no Japão, vim naturalmente a conhecer os contos japoneses, mas também contos de todo o mundo, como 'A Pequena Sereia', que é muito bom. Existe frequentemente um tema comum sobre o mar, o oceano. Isso como que sugeriu o tema principal para pano de fundo desta história de Ponyo."
A frágil relação entre os humanos e o meio ambiente é um tema recorrente no trabalho de Miyazaki. Se andas por aí a brincar com a natureza, é melhor que tenhas cuidado! No seu filme mais recente, a busca de Ponyo provoca um desequilíbrio na Natureza que desencadeia um gigantesco tsunami.
"É minha convicção pessoal que não podemos separar-nos da Natureza", afirma ele. "À medida que formos penetrando mais fundo dentro de nós, acabaremos por alcançar o ponto do nosso regresso ao oceano. Estamos ligados."
Ele encontrou o dele neste filme - embora a água do mar, explique, seja a coisa mais difícil de animar.
"Disse ao meu pessoal que desenhasse o oceano com vida, pois é um ser vivo e mostrar a forma ou movimento da água e das ondas não chega. Eles desenharam o oceano com uma data de lixo, porque é assim que ele está hoje. Não estou a dizer se isso é bom ou mau, mas creio que o oceano neste filme está bastante mais limpo do que o oceano verdadeiro."
A história da relação do Japão com o mar foi, diz, determinante para imaginar "Ponyo à Beira-Mar". "Ao longo de muitos, muitos, muitos séculos, o nível das águas subiu e causou erosão da terra; noutros períodos, a água recuou e deixou a terra com uma forma diferente. Por isso, vamos esquecer o aquecimento global e todos os estados anormais da Natureza hoje, pois sempre houve constante interacção entre o Homem e a Natureza. O problema é que os seres humanos têm um tempo de vida limitado, de menos de cem anos". Fala mais baixo: "Olhe, eu nunca quis fazer um filme para criar mais ansiedade ou receio de um contratempo. Esse é o lado negativo da emoção, não é o meu objectivo quando faço cinema. Os japoneses não são bons em explosões emocionais. Quando um terramoto atingiu o Japão e houve uma casa que ficou destruída, o proprietário apareceu na reportagem do noticiário com um sorriso na cara: 'Oh, a minha casa ficou simplesmente destruída. Tenho de viver assim.' Eu gosto desta mentalidade japonesa: as catástrofes naturais fazem parte da nossa vida e vivemos em consonância com elas, em vez de nos opormos."

Pais e filhos
Embora Miyazaki diga que a história de Ponyo se destina a crianças de cinco anos, ela contém igualmente muito para os adultos. A protagonista é uma rapariga, como em tantos filmes deste animador, mas "Ponyo à Beira-Mar" é também acerca de um rapaz de cinco anos chamado Sosuke, que vive na falésia junto a um farol e se sente sozinho, porque o pai está sempre fora, no mar. Quando Ponyo é arrastada para terra pelas ondas, ele torna-se seu amigo, embora ela em breve seja puxada de novo para o oceano pelo seu pai feiticeiro. Mas consegue escapar e, antes de o fazer, despeja a reserva de elixir mágico do pai para as águas do mar, o que provoca um tsunami. De regresso a terra firme, ela transforma-se numa rapariga bonita muito apreciadora de presunto e com poderes especiais muito úteis no salvamento da mãe de Sosuke, que tinha ido visitar um lar de idosos quando o tsunami atingiu a costa.
É a história dele, também. Quando falámos com o filho de Miyazaki - Goro, 42 anos - a propósito do filme que realizou em 2006, "Tales from Earthsea", pareceu uma pessoa mais séria do que o pai e recordou como tinha sido duro crescer com um pai que estava a maior parte do tempo ausente. É um bocadinho como no filme quando o pai está fora, no barco. Será Miyazaki o pai no barco?
Ele solta um dos seus risinhos um pouco embaraçados e diz que não é o único. "Muitas das pessoas com quem trabalhamos, como o meu produtor principal, Toshio Suzuki, e os seus amigos, são exactamente iguais a esse dedicado pai 'workaholic'. Por isso, é um desafio que temos de passar à geração mais nova. O meu filho, por exemplo, já tem de conseguir fazer ambas as coisas: assumir a paternidade e dedicar-se ao seu trabalho. No Japão, muitos pais mais novos estão realmente a assumir esse desafio dado que as mulheres japonesas estão decididamente a ressentir-se de que o trabalho de criar a família lhes caiba só a elas. As coisas estão a mudar, estão decididamente a mudar."
Na verdade, o homem que temos à frente possui claramente um sentido de humor de miúdo - ainda que sendo uma espécie de deus no Japão. Curiosamente, o seu dínamo de "workaholic" não era forte na juventude. "Foi estranho. Eu era tipo rapazinho fraco, mas quando cheguei aos 14 anos, de repente, ganhei algum vigor. Algo fez clique e passei a conseguir correr mais depressa." O que é que o tornou fraco? "Nesse tempo, depois da Segunda Guerra Mundial, foram dias difíceis. Havia escassez alimentar e o nível sanitário era baixo no Japão. Muitas crianças pequenas tinham pouca saúde."
É compreensível, portanto, que durante a infância ele tivesse desenvolvido o gosto pelos livros e pelo desenho. As suas personagens femininas têm a ver com o facto de ter tido uma mãe forte, mas Miyazaki colhe inspiração para os seus filmes a observar as crianças de hoje. "Quando se observa com atenção crianças de três anos, nota-se como vivem uma tremenda quantidade de experiências num curto espaço de tempo. Talvez agora eu já seja suficientemente idoso para as admirar. Quando era mais novo, pensava sempre que as crianças eram demasiado barulhentas. 'Calem-se!'", grita ele, rindo-se.
Hoje que é um avô orgulhoso (teve o primeiro neto em Maio), ainda gosta mais de crianças. "Disse ao meu neto 'segura no lápis', e isso é algo que só um avô podia dizer. Penso que um pai não podia dizê-lo aos filhos, mas um avô pode. Já lho disse umas três vezes."

Contra o computador
Evidentemente que algumas coisas nunca mudarão para o Miyazaki mais velho: o modo como faz animação, por exemplo. Nunca permitiu que mais de dez por cento da extensão do filme fossem produzidos em computador.
"Utilizar o computador afecta lentamente o nosso sistema cerebral", diz ele, "por isso, voltando ao desenho a lápis, o animador tem oportunidade de pensar, de tentar obter o melhor de si próprio. Eu sinto firmemente que, pelo desenho à mão, o trabalho se torna mais simples e, ao simplificar o trabalho real, levamos menos tempo. Em geral, fazemos um esforço para dar mais pormenores ao barco e não ao movimento; desta vez, fizemos um desenho simples do barco e dedicámos mais tempo aos movimentos." Quando comparado com o seu filme anterior, "O Castelo Andante", "Ponyo à Beira-Mar" é mais simples, diz Miyazaki. "Desde o princípio, o filme tinha a intenção de ter um cenário e um tema simples. Não estou a prometer que continuarei a manter-me simples", diz ele, fazendo uma pausa para efeito dramático, "porque, no geral, gosto de alguma sofisticação; gosto de coisas com complexidade."
Não está necessariamente a referir-se a John Lasseter e aos filmes 3D da Pixar: Miyazaki começa a trabalhar à sete da manhã todos os dias e, no pouco tempo de ócio que ainda concede a si próprio, dá passeios a pé, olhando constantemente à sua volta em busca de inspiração. "John Lasseter é um dos meus melhores amigos; não vi o filme dele mas é suposto que isso seja segredo. Mamoru Oshi é outro dos meus amigos chegados e eu tão-pouco vi os seus filmes nos últimos tempos. Portanto, para falar com franqueza, não vejo filmes, não vejo televisão e, em geral, não leio banda desenhada. Agora que estou a ficar mais velho, quero ter a certeza de que não perco tempo. Estou a tornar-me muito egoísta e faço coisas de que gosto. Andar a pé é uma maneira melhor de gastar o meu tempo. Gosto verdadeiramente do panorama e ao deslocar-me posso ver a vista mudar. Isso dá muito mais gosto do que o enquadramento fixo. Mas não faço 'jogging'", diz, abafando o riso.
Embora não tenha planos de se reformar, Miyazaki está desejoso de transmitir o que sabe a animadores mais novos. "Preciso de lhes dizer que parem de usar a Internet e o correio electrónico, que voltem ao papel e ao lápis e utilizem os seus cinco sentidos para desenhar. Tenho o projecto de montar um estúdio inteiramente novo, afastado da cidade muito populosa, barulhenta e movimentada de Tóquio. E quero começar a ensinar uma jovem equipa desde o princípio. Quero tornar isso um programa de formação para novos animadores jovens."
Nem esse projecto nem "Ponyo à Beira-Mar" são ainda um testamento, mas a verdade é que Miyazaki se divertiu claramente a desenhar as pessoas de idade do lar de idosos, que rejuvenescem graças à magia do mar. "Sabe, sou um homem idoso, também! Um idoso principante."

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