De quem são os pesadelos de Binjamin Wilkomirski?

"Poderá ter sido assim? Estas são as minhas memórias, há alguma lógica nelas?""Fragmentos" impressionou o mundo. O livro revela o Holocausto visto pelos olhos de uma criança, perdida, sozinha, nos campos de concentração nazis. Esta vida de horror, por entre cadáveres e ratos, é a única normalidade que conhece. O autor, Binjamin Wilkomirski, recebeu prémios e elogios. Até alguém descobrir que ele não era judeu e nunca tinha estado num campo de concentração. Primeiro foram os pesadelos. Binjamin Wilkomirski acordava a meio da noite, a suar. As imagens - tão reais que teria que as ter vivido - voltavam a assombrá-lo. Ao longo dos anos seguintes os pesadelos, sempre os mesmos, foram-se tornando cada vez mais frequentes e cada vez mais reais. Binjamin não suportava dormir e não aguentava ser tocado. Foi depois de um destes sonhos - ouvia um som terrível, corria para uma janela e via pessoas a serem queimadas - que decidiu seguir os conselhos de um amigo e iniciar sessões de psicoterapia.As memórias começaram a surgir à superfície. E Binjamin começou a escrevê-las. O seu amigo, Elitsur Bernstein, passou a receber faxes às duas ou três da manhã com longos relatos de cenas terríveis - cenas que Binjamin teria vivido na sua infância nos campos de concentração de Majdanek e Auschwitz-Birkenau, onde estivera entre os dois e os cinco anos. Os relatos vinham acompanhados de perguntas angustiadas: "Poderá ter sido assim? Estas são as minhas memórias, há alguma lógica nelas?".Pouco a pouco os fragmentos foram-se encaixando num puzzle maior, e Binjamin começou a traçar a sua trajectória dos primeiros anos de uma infância que tinha sido praticamente apagada. E no final desse longo e doloroso processo de recuperação das memórias, decidiu escrever um livro. Chamou-lhe "Fragmentos" porque as memórias não passavam disso mesmo. Mas comoveu milhões de pessoas por todo o mundo - o livro foi traduzido para doze línguas, ganhou o National Jewish Book Award nos EUA, o Jewish Quarterly Literary Prize na Grã-Bretanha e o Prix de la Memoire de la Shoah em França.Binjamin Wilkomirski descreveu o horror visto pelos olhos de uma criança que não tinha qualquer memória da vida antes da guerra e para quem, por isso, "o mundo dos campos de concentração era a normalidade". O que mais impressionou os leitores foi precisamente ver o Holocausto pelo olhar de uma criança que não sabe que existe outra vida para além daquela, que acredita que a existência é assim: a morte e o horror, a um ritmo quotidiano, num campo de concentração nazi.Mas no início de Outubro, na Feira do Livro de Frankfurt, o editor alemão de "Fragmentos" anunciou que iria retirar do mercado a edição "hardback" e em vários outros países os editores estão a ponderar se devem ou não fazer o mesmo. É que um longo processo de investigação levou a uma conclusão: Binjamin Wilkomirski não é judeu, não nasceu na Letónia, tal como garante, e nunca esteve num campo de concentração. Chama-se Bruno Dossekker e nasceu na Suíça, onde passou toda a sua infância.Mas o livro que escreveu não é uma fraude. Binjamin não quis enganar ninguém. Apropriou-se apenas de uma história - ou de muitas histórias, as de todos os judeus que estiveram nos campos nazis - e fê-la sua. Construiu uma memória e uma identidade e convenceu-se de que era Binjamin Wilkomirski. De onde vêm então os seus pesadelos?Comecemos, para não nos perdermos, pela história "falsa", a que ele conta em "Fragmentos". Binjamin seria judeu e teria nascido na Letónia em 1938 ou 1939. Assiste ao que se supõe ser o massacre dos judeus em Riga, a capital letã, em 1941, e vê um homem, que poderia ou não ser o pai, ser esmagado por um carro contra uma parede.Depois desta morte horrível, lembra-se de uma fuga de Riga, de barco, com um grupo de pessoas que em seguida se refugiam numa quinta na floresta polaca. Daí, Binjamin, que na altura teria três ou quatro anos, é levado para o campo de concentração identificado como Majdanek. É aí que começa o pesadelo, nos barracões cheios de corpos sobre os quais se passeiam ratazanas, os bebés mortos de fome, as pessoas que são levadas, o som dos crânios a serem esmigalhados. O livro relata também um encontro com uma mulher que alguém diz ser a sua mãe, mas que está agonizante e que tem um único gesto: passa-lhe, discretamente, para a mão um pedaço de côdea de pão, dura e negra. A criança é, a seguir, levada para outro campo, supostamente Auschwitz, e consegue sobreviver, sendo finalmente libertada quando a guerra termina, e levada para um orfanato judeu em Cracóvia por uma mulher que se refere a ele, pela primeira vez, como Binjamin Wilkomirski. Mais tarde é levado para outro orfanato, desta vez na Suíça. E é aqui que o seu caminho se cruza com a sua outra identidade: a de Bruno Dossekker.Bruno Dossekker vivia num orfanato na Suíça, onde a sua mãe Yvonne Grosjean, sem posses para cuidar de uma criança cujo pai desaparecera, o entregou. Bruno foi adoptado por um casal relativamente rico, Kurt e Martha Dossekker, ambos já falecidos, mas de que Binjamin/Bruno não guarda boas recordações. Aos seus olhos, eles são culpados do mais grave dos crimes: roubaram-lhe a infância, a identidade, a memória, o passado, e deram-lhe uns novos. Obrigaram-no a esquecer-se de quem era e de tudo o que tinha sofrido. Obrigaram-no a esquecer-se de um passado que ele não conseguia sequer explicar - ou compreender. "Nunca ninguém me disse que a guerra tinha acabado", escreve. "Nunca ninguém me disse que o campo tinha acabado, que estava finalmente, definitivamente acabado".Elena Lappin, ex-editora da "Jewish Quarterly" investigou para a revista "Granta" o mistério de Binjamin Wilkomirski. Durante meses procurou pistas, entrevistou-o várias vezes, foi aos sítios que ele identificava no livro, procurou as memórias - verdadeiras ou falsas - por detrás de "Fragmentos". É ela que conta que, a dada altura, ele se mostrou convencido de que Bruno Dossekker tinha sido uma outra criança adoptada antes dele pelo casal Dossekker, e que um dia teria fugido de casa. Desesperados, estes teriam adoptado uma segunda criança dando-lhe a identidade da primeira. No entanto, e sempre segundo Elena Lappin, os documentos que existem indicam que a criança que deu entrada no orfanato suíço chamava-se Bruno Grosjean, nascido na cidade suíça de Biel e entregue às autoridades porque era filho ilegítimo de uma mulher pobre. A criança adoptada pelos Dossekker cresceu normalmente, estudou música, casou uma primeira vez, teve três filhos, separou-se, casou uma segunda vez, e só nessa altura, a partir de 1981, é que começou a ter memórias da sua "outra infância", a do horror dos campos de concentração nazis. Os seus pais adoptivos morreram em 1986. "Fragmentos" foi publicado na Alemanha em 1995. Lappin lembra que na altura ninguém deu importância a duas páginas no final do livro, em que "timidamente introduzia aos leitores a ideia de que Binjamin Wilkomirski não era a sua única identidade", explicando que, como acontecera com muitas outras crianças do Holocausto, tinham-lhe sido dados "um outro nome e outra data e local de nascimento". O primeiro a atacar esta versão dos factos foi um jovem judeu suíço, Daniel Ganzfried, num artigo publicado na revista suíça "Weltwoche" em Agosto e Setembro de 1998. "[Wilkomirski] diz ter vivido na Suiça só a partir de 1948", diz Ganzfried. "Mas eu descobri nos registos da escola em Zurique que ele frequentou aí as aulas em Abril de 1947, e encontrei uma fotografia dele no Verão de 46, no jardim, com os seus pais adoptivos, num álbum de família". Depois descobriu a certidão de nascimento datada de 1941, e que nega assim a data de 1939 que Benjamin indica no livro como sendo a do seu nascimento. Desde aí, as dúvidas foram-se multiplicando, assim como as pressões sobre os editores nos vários países para esclarecerem a situação. Um historiador suíço, Stefan Machler, foi encarregue de fazer uma investigação séria sobre a vida de Binjamin/Bruno e, depois de seis meses de trabalho, as suas conclusões estão contidas num relatório confidencial entregue aos editores há poucas semanas - e cuja análise final deverá ser apresentada este mês. Foi este relatório que levou o editor alemão a retirar do mercado a edição "hardback" de "Fragmentos" e que está agora a ser estudado pelos outros editores. Elena Lappin defendeu já que o trabalho de Machler deve ser tornado público, porque "a verdade cura". Ela foi das que mais procurou essa verdade. No texto que publicou na "Granta" confessa a sua simpatia por Binjamin, mas chega ao fim convencida de que ele transformou o trauma de ter sido abandonado pela mãe e de ter passado a infância num orfanato numa tragédia de dimensões iguais à de uma criança perdida no Holocausto. No entanto, perante as investigações dela, a história que ele conta nunca chega a desmoronar-se completamente.Relativamente à sua suposta mãe, Yvonne Grosjean, Binjamin garante que a primeira vez que ouviu esse nome foi em 1964 quando, para se casar, teve que pedir uma certidão de nascimento. No entanto, ao morrer esta mulher deixou todos os seus bens em seu nome, no nome do seu filho, e Binjamin recebeu essa herança sem a contestar. Mas ao longo do seu percurso de "descoberta" algumas pessoas confirmaram alguns pormenores da sua história. Um ponto fundamental é a sua passagem pelo orfanato de Cracóvia logo após o fim da guerra: se existisse algum sinal da sua presença lá (mais fácil de verificar do que o resto), isso confirmaria a história anterior, o nascimento em Riga, a passagem pelos campos. Seria a prova definitiva de que, ao contrário do que diz Daniel Ganzfried, Binjamin não teria nascido na Suíça.Um homem que vive em Israel confirmou a descrição do recreio do orfanato em Cracóvia (um recreio que hoje já não existe, e que só uma pessoa que o tivesse conhecido na época poderia descrever). Não se encontrou, no entanto, ninguém que se lembrasse de Binjamin Wilkomirski ter aí estado.Há uma mulher, a quem Binjamin dá particular importância e que é identificada como Mila (entre outros nomes). Ela recusou-se a falar com Elena Lappin, mas esta traçou o seu percurso. Mila conheceu Binjamin em Zurique nos anos 60, mas o autor de "Fragmentos" diz que foi um reencontro, e que ambos se tinham conhecido muito antes, no final da guerra, no orfanato de Cracóvia. Há, de facto, registos da passagem de Mila pelo orfanato (o que não acontece com Binjamin) em 1946, mas, segundo os cálculos de Lappin, Binjamin (se lá tivesse estado) teria deixado a instituição em 1945, portanto não podiam ter-se conhecido. A tese de Lappin é que Binjamin "absorveu" a memória da infância de Mila e da sua vida no orfanato e, como fez com muitas outras coisas, transformou-as em memórias suas."Serei eu?", escreve Binjamin numa fotografia de um grupo de crianças e professoras do orfanato de Cracóvia, em 1946. Um círculo feito a caneta assinala um rapaz louro, de risco ao lado, pose tímida. O grão da velha fotografia não deixa ver claramente o olhar e a expressão. É apenas um rosto, num momento da história, uma criança num orfanato há muitos, muitos anos. Uma memória? Impossível dizer se aquele rosto corresponde ao de Binjamin hoje, o seu cabelo eriçado, as suas patilhas, os olhos cansados atrás dos óculos, a testa alta. Impossível, para ele próprio, ter uma certeza.Do relato de Elena Lappin ficamos com a impressão de que ele é hoje um homem esgotado, fisicamente debilitado pela luta que trava com o mundo e consigo mesmo. A perseguição de uma memória que ele diz ter-lhe sido roubada, negada, e que agora os editores, os críticos, o público, querem-lhe negar pela segunda vez. Alguns dos que mais o atacam são precisamente judeus, em defesa de uma memória do Holocauso que consideram como sua.O último ano foi duro para o homem que diz chamar-se Binjamin Wilkomirski. Os que o conhecem descrevem-no como uma pessoa profundamente ferida. Quando o reencontrou, Elena Lappin achou-o muito abatido: "Da última vez que nos vimos parecia muito feliz." "Estava contente por o meu livro estar a ajudar as pessoas e porque estava a receber muito apoio moral. Sentia que podia sair do meu esconderijo e ser eu próprio. Pela primeira vez na minha vida sentia-me liberto". "E agora?". Binjamin ficou calado durante alguns momentos. "Agora sinto-me de regresso aos campos".

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