De príncipe a rei

É uma passagem de testemunho. O rei morre e o príncipe Hal vai assumir o trono. Mas é quase assim também com o actor Miguel Borges e o encenador Jorge Silva Melo. O primeiro vai dirigir o segundo em "Não sei", colagem de textos a partir de "Henrique IV", de Shakespeare.

Miguel Borges é "um actor que carrega para o seu trabalho o seu corpo e a sua vida e isso chama-se não apenas actor mas artista". Assim descreve o encenador Jorge Silva Melo o furacão com quem tem vindo a trabalhar a um ritmo tão regular como aquele a que as suas peças chegam aos palcos. Nele vê "uma mundividade especial, uma vontade de falar de dentro" e, por isso, Silva Melo lançou-lhe o desafio de uma criação própria - a estrear a 30 de Março, no Espaço A Capital.Chama-se "Não Sei" a peça a sair de uma súbita inversão de papéis que torna Miguel Borges em encenador e Silva Melo no seu actor (com Paulo Claro). E o texto assumido como base de trabalho torna-se quase metáfora da situação. É um exerto de "Henrique IV", de Shakespeare, a parte em que Falstaff comunica ao jovem principe Hal a morte do pai e, consequentemente, a sua nova condição de rei.Silva Melo assume o papel do velho, gordo e boémio Falstaff - que ao longo da intriga política se descobre esconder, afinal, uma inteligência penetrante na compreensão dos problemas humanos - e Miguel Borges o do jovem príncipe a tentar libertar-se do passado, com medo de arriscar o futuro que se abre diante de si. É com um diálogo entre os dois que começa "Não Sei", e é quase tudo o que pode prever da estrutura da peça. Depois destes minutos iniciais, com as devidas marcações de texto e cena, Miguel Borges ficará sozinho em palco dando livre curso a tudo o que o caracteriza: palavras atiradas, gritadas, grunhidas, sons e um corpo que se atira ao chão, que sobe ao tecto e cai lá de cima para estar onde sente que é preciso. "Vou jogar com isso: vou subir paredes, vou partir vidros, vou-me rasgar todo, vou bater nas paredes, com a minha cabeça e com as vossas cabeças. Não vou abandonar isso", explica o actor rindo, como se dissesse que não é bem assim.Na verdade, a existência dos textos deve-se a "uma tentativa de contrariar esse actor", esse registo, sendo a presença dos outros intérpretes "um travão para não ir por ali fora e partir tudo". "Há uns tempos atrás nem me preocuparia com textos. Gosto da não preparação, gosto de ser apanhado desprevenido, de saltar para lá e ver o que é que acontece", explica. E foi quase assim, também, que aceitou a proposta de Silva Melo. "Pelo dasafio em si." Desafio não só de encenar, como de assumir a autoria de alguns textos que Silva Melo está a "tentar arrumar" e cruzar com a trama inicial, de forma a permitir "uma interpretação muito livre". Neste caso "uma interpretação muito livre" tem vários significados. Impõe-se um: os textos não vão ser decorados com uma ordem pré-determinada, "vão antes servir como um universo muito grande de possíveis caminhos". Caminhos que serão abertos ou descobertos em cada representação ao sabor do momento e dos factos - luz, público, sensações, e o que eles levarem o actor a fazer ou dizer, relacionando-se com os restantes elementos disponíveis (como alçapões, água, chapas que vibram e fazem ruidos). "Vou jogar tudo ao sabor da batuta, na altura. Sinto-me um bocado como um maestro: vou jogar com o meu corpo, com os tempos, com os elementos, com os textos que me vão ocorrer ou não no momento. Vou tentar fazer música ao vivo." Ou seja, quem quer que assista a "Não Sei" irá presenciar o nascimento da própria peça."Gostava que as pessoas assistissem ao processo de descoberta desses elementos e não à mostragem da descoberta. Na descoberta em si é que está a poesia, isso é que é bonito, arrepiante, de ver ou de sentir", explica Miguel Borges. "Logo no início [de carreira] tive a oportunidade de trabalhar com o João Fiadeiro na peça 'Branco Sujo', que foi a confirmação de que esta linguagem é possível e faz todo o sentido", explica. "Senão, decoras um texto, interpretas uma personagem, és um funcionário... Não gosto da obra acabada e não, não gosto nada das marcações. Gosto do efeito, mas cru ainda, por cozinhar."Este é um espectáculo "muito esperimental e arriscado", como admite Silva Melo. Mas é também exactamente o que queria ver: "O que seria o mundo visto por Miguel Borges, na sua poética própria". E como é esse mundo? "A minha resposta às perguntas é normalmente 'não sei'. Até quando me perguntam as horas digo 'não sei', porque não uso relógio. Este 'Não Sei' é talvez uma tentativa de ficar a saber", responde Miguel Borges. "A minha melhor imagem é talvez um barco à vela: primeiro põe-se o barco na água e viaja-se ao sabor do vento; depois quer-se viajar ao nosso próprio sabor e aprende-se a bolinar."Esta encenação corresponderá a mais uma etapa dessa aprendizagem. Apesar de um sólido percurso desenvolvido com Jorge Silva Melo e os Artistas Unidos, João Garcia Miguel e o grupo Olho, e João Fiadeiro e a Companhia Re.Al, em teatro e "performance", Miguel Borges sente que é "cada vez menos bem sucedido": "Não sei se é por saber mais e, logo, exigir mais. Mas acho que é por arriscar cada vez mais. Menos elegante, mais imperfeito, com mais dificuldades. Isso agrada-me, porque significa que estou a entrar em campos que não domino", afirma com ar confiante. Mas isso não assusta, não dá medo? "Contradizendo-me, tenho um medo absoluto do fracasso e por isso é que arrisco. De tanto medo, só tenho uma hipótese: fechar os olhos e saltar. Vais a subir uma montanha, há um pitão que falha; vais a escorregar por ali a baixo e, no último minuto, estendes o braço para uma coisa que não sabias que estava ali. Estás vivo, ileso, nem sabes como."No meio de tudo, "Henrique IV" surge como uma necessidade de enquadramento. Para que "as perguntas" deixem de ser as de Miguel Borges para passarem a ser as de Hal, o jovem príncipe. Estas giram à volta "daquela coisa da opção, da direcção, da escolha. Tem a ver com o facto de ele poder vir a sentar-se numa cadeira que nem todos sabem ou devem usar. E ele relmente não quer." Mas não se sabe, não se sabe nunca: "Vê-se ele a ir embora, com a roupa [de rei] debaixo do braço, se calhar calça um sapato, mas fica aí."Provavelmente de qualquer forma não interessaria saber de antemão quais as escolhas de Hal ou Miguel Borges em "Não Sei", porque tudo - incluindo o teatro, uma carreira ou a vida - não passa de "uma orquestração de jogos de tempos, de intenções, de contrapassos do que se espera e não se espera. 'Ele vai cair a toda a hora e não cai. Depois cai quando já não se espera'. Agora é começar a jogar um bocado com isso, com a carreira, e destruir-la, reconstrui-la." Com "a maneira original e honesta de representar, cada dia" que Silva Melo identifica.

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