'Da svidania, Mir'*

Russos amargurados com destruição da plataforma orbital por falta de dinheiro

Faltava um minuto para as seis da manhã (hora de Portugal) quando a estação espacial Mir, já partida aos bocados e em chamas, atravessou ontem os céus para terminar o seu salto mortal no oceano Pacífico. "A Mir cruzou o horizonte em cinco, seis, sete, talvez nove pedaços, num enorme rasto dourado", relatou o enviado da CNN, Hugh Williams, em Nadi, nas ilhas Fidji. Em Korolov, perto de Moscovo, no centro de controlo das missões, onde os técnicos, cientistas e cosmonautas não dormiam há dois dias para preparar a destruição da Mir, o ambiente não era propriamente de entusiasmo, relata a agência Reuters. "Agora vamos beber uma aguardente e brindar por tudo ter terminado bem e ainda podermos mostrar ao mundo que somos bons nalguma coisa", disse Alexander Lazutkin, que em 1997 esteve durante seis meses na estação orbital que agora está no fundo do mar, a cerca de 5800 quilómetros da costa oriental da Austrália.Com os restos da estação - o maior artefacto feito pelo homem que alguma vez reentrou na atmosfera terrestre - vieram também alguns dos objectos que os cosmonautas lá foram acumulando ao longo dos 15 anos de vida da estação. Nem tudo foi trazido de volta à Terra, explicou Serguei Avdeiev, que é o ser humano que mais tempo passou no espaço - 748 dias, repartidos por três missões. Havia muitos livros - desde a poesia de Alexander Pushkin até manuais de instruções sobre foguetões -, discos de Led Zeppelin, Pink Floyd e rock russo e até uma fotografia a preto e branco do primeiro homem no espaço, Iuri Gagarin, junto com árvores de Natal de plástico.A estação caiu no sítio certo, longe de locais habitados - muitos estados do Pacífico, como o Japão, as Fidji, a Austrália ou a Nova Zelândia, temiam que a Rússia não conseguisse controlar a queda da estação, que penetrou na atmosfera à velocidade de oito quilómetros por segundo, embora depois abrandasse para 200 a 300 metros por segundo. Era o suficiente para estoirar com uma parede de betão com dois metros de espessura. Mas, afinal, nem sequer um dos 1500 fragmentos da estação acertaram no alvo que a empresa de "fast-food" norte-americana Taco Bell colocou no Pacífico Sul, ao largo da costa australiana.Nos Estados Unidos, a decadência da Mir - não só porque levava já 15 anos em órbita, mas sobretudo porque o falido programa espacial russo não permitia custear as operações de manutenção necessárias - serviu mais de mote para fazer piadas, como a da Taco Bell, que prometia oferecer um "taco" a todos os norte-americanos se algum pedaço da estação acertasse no seu alvo. Na Rússia, no entanto, o sentimento era mais de desânimo. "Toda a gente quer que eu chore, mas não vou chorar", disse Vladimir Soloviov, que foi o comandante da primeira tripulação da Mir e agora é chefe do centro de controlo em Korolov. Os muitos técnicos que ali trabalham, de rostos cansados e carregados, eram assediados em todos os momentos de pausa pelos 500 jornalistas que tiveram autorização para assistir às operações de destruição da Mir nas instalações do centro. "Trabalhámos tanto que já nem sentimos pena. Agora só queremos que isto acabe de uma forma digna", dizia Olga, uma técnica do centro, à agência AFP.Mas o antigo cosmonauta Pavel Vinogradov conseguia ainda sentir o desapontamento por ver desaparecer a Mir. "Bem, tenho muita pena que seja destruída. É como se estivéssemos a queimar a nossa própria casa", disse à AFP. Devia doer-lhe especialmente, já que ele foi o herói do Verão de 1997, ao correr o risco de entrar no módulo Spektr, despressurizado em consequência da colisão com uma nave de carga Progresso, para procurar o minúsculo buraco na fuselagem que tantos problemas causou a bordo. "Dizem que a Mir estava velha mas, na realidade, o módulo Zvezda da Estação Espacial Internacional [ISS] é semelhante ao módulo de base da Mir. Portanto, tudo estaria bem se houvesse dinheiro. As nossas relações com os Estados Unidos vão degradar-se, por causa da ISS", disse ainda Vinogradov.Outros russos, entrevistados nas ruas de Moscovo por jornalistas da Reuters, iam no mesmo sentido. "Tenho muita pena. É toda uma era que termina. Quando lançaram a estação ainda estava na escola e agora a minha filha tem já sete anos", disse Nadezdha, de 29 anos, que é gestora de empresas. "Estamos a ceder cada vez mais. Qualquer dia, quando não tivermos mais dinheiro para a ISS, os americanos vão expulsar-nos a pontapé da estação", comentou Serguei, um economista de 42 anos. Vera, uma mulher-a-dias de 54 anos, ainda se lembra do lançamento do primeiro satélite, em 1957 - o Sputnik -, e do regresso à Terra de Iuri Gagarin, em 1961, depois de se ter tornado o primeiro homem no espaço. "Cresci a ver os feitos dos cosmonautas. Como poderia esquecê-los?"

Sugerir correcção