Bosque de um pássaro só

Autor das letras de Rui Veloso, Carlos Tê estreou-se no romance. Um retrato de Portugal antes do 25 de Abril, feito por gente banal. Ousado por arriscar dar a voz ao senso comum, deficiente por não ter sabido trabalhá-la.

Quando lhes roubam as crias, os melros procuram-nas para lhes oferecer bagas venenosas. Diz a crença popular que estes pássaros preferem ver os filhos mortos do que vivos em cativeiro. Em "O Voo Melancólico do Melro", Carlos Alberto Gomes Monteiro (conhecido por Carlos Tê, letrista de Rui Veloso) recupera esta crença para falar daquele que seria o sonho libertário e revolucionário de um grupo de amigos, esmagado pelos condicionalismos bairristas e a mesquinhez do regime de Salazar. Através de uma complicada trama de vozes, as dos vários protagonistas deste romance sem intriga nem climax, o autor faz desfilar: Vladimiro, deputado com pretensões a escritor; Bárbara, jovem culta, sexualmente desenfreada, imprópria para relações de amor; Joaquim, menino rico, chegado de Moçambique que, oferecendo a banheira aos amigos, desmistifica a ideia de os pobres cheirarem mal de nascença; Augusto e as suas inquietações à volta da limpeza ou sujidade do amor; Felisberto, intelectual com medo de perder a memória, que se agita perante o progressismo do padre Rubim. A galeria de personagens é interminável, e a vida pequenina em que se move suficientemente banal para entediar um leitor em busca da tal rebelião sem complacências, apanágio dos melros. Carlos Tê andou às voltas com o romance durante os últimos cinco anos, pegando e largando, sentindo que "a história não era forte mas podia ser um ponto de vista sobre o silêncio em que Portugal vivia nos anos da ditadura e a oportunidade de ficcionar uma escrita de gente que nunca entendeu muito bem o que se estava a passar", segundo explicou ao Leituras. Pretendia falar da "melancolia democrática", uma expressão que conheceu através de Manuel Alegre, eficaz na descrição da existência deprimente de um país que não percebia porque motivo a Coca-Cola era proibida no mercado. Ignorava o fundamento para a licença de porte de isqueiro. Não questionava a invasão do lar por fiscais, em busca de uma televisão, sem a taxa em dia. Um país onde a fé em Deus era postulada em função dos golos que o clube preferido marcava na baliza do adversário, e não sabia exactamente porque morriam civis nas colónias. Apagando-se do romance, Carlos Tê dá voz a um grupo de rapazes que vai contando a sua própria história, descrevendo o sentimento de estar contra o regime, contra as tias que vigiam as práticas onanistas debaixo dos lençóis, contra o lápis azul empunhado por um coronel na reforma que insiste em não sair da ribalta do poder. Este grupo de rapazes são os melros, os pássaros que querem voar, mas cuja afirmação se fica pela mera atitude de contestação. Rapazes que sonham ser aves mas a quem faltam as asas, os músculos e a coragem de ultrapassar a rebeldia e encontrar a identidade que não necessita de inimigos para se saber existente e actuante. Depois dos concertos, depois de tantas leituras proibidas, depois de tantas experiências clandestinas - do sexo às drogas -, os adolescentes tornam-se adultos menores, animais rastejantes que nunca hão-de ver o céu e menos ainda terão a capacidade de viver com garra e sonho. Oscilam entre os conformistas que aceitam a visão do sistema como a única realidade e os rebeldes sem causa, à espera de um ideal para se sentirem vivos. "Esta melancolia veio também a atingir todos aqueles que não sabiam bem o que deviam combater num regime democrático. Agora uma euforia consumista suga a vida de todos os que não desenvolveram um eu forte e realizado. A situação de Portugal neste momento é essa, os vazios das pessoas estão a ser preenchidos com a aquisição de telemóveis e outros bens de consumo ou pela fruição de várias solicitações culturais", lamenta Carlos Tê, soltando um sorriso sempre que se fala de melros. É verdade que em pequeno subia às árvores para admirar os seus ovos e nem sempre entendia porque razão eram azuis, "ter-se-iam estragado com a chuva?" Num romance que perde por falta de síntese, o autor consegue os momentos mais originais nos encontros da personagem Vladimiro com a natureza: "A profissão que eu gostaria de exercer, se existisse, era inspector-geral dos musgos, vadiar pelos bosques no Inverno a medir a espessura dos musgos, a campânula dos cogumelos, a voragem dos fungos por um raio de sol." Sempre que Carlos Tê escreve com simplicidade, a partir de um conhecimento sensorial, confirma o talento que tem revelado nas letras das canções de Rui Veloso. O problema surge quando insiste em complicar a estrutura para tapar as fragilidades da história, que afinal não existe senão sob a forma de múltiplas historietas e algumas cogitações existenciais que nem sempre resultam porque, precisamente, as personagens são porta-vozes do senso comum e torná-las fascinantes é mais difícil. A melhor trabalhada, aquela por quem o próprio autor sente mais ternura, é a de Vladimiro, não por as frases do romance lhe virem à cabeça quando se senta na sanita, nem tão pouco por nessas ocasiões se servir do memogravador, mas porque é o único que ao viver a morte constrói uma realidade. "Vladimiro é o único que no final do romance consegue algum equilíbrio emocional e juntamente com o padre transforma os Melros, antigo grupo de teatro amador, numa associação cultural com teatro, biblioteca, desporto e escola de música. É ele quem é surpreendido por ouvir um tema de Gershwin num simples bairro. Não sei se isto aconteceu no nosso país, suponho que sim, será uma das vitórias do 25 de Abril", defende Carlos Tê, satisfeito por ver que o presente oferece escolas de música onde qualquer jovem pode aprender, coisa que no seu tempo não existia. O deputado Vladimiro enfrenta a lentidão perversa da burocracia que atrasa a mudança necessária e urgente. Mas nem por isso deixa de rejeitar a cota da palmeta (espécie de peixe muito disputada na indústria, cuja pesca chegou a ser proibida a nível europeu, numa decisão tão controversa que originou a chamada "guerra da palmeta"). É certo que Vladimiro, tal como os seus amigos, não conhece o amor, mas pelo menos não procurou resolver a sua melancolia através de um casamento insonso, nem tomou por esposa a mulher-mãe, sempre disposta a ser o único comandante no navio conjugal. Enriquecido pela experiência da morte do pai, pelas responsabilidades assumidas desde cedo, Vladimiro é talvez o único pássaro desta história. Um pássaro político nunca literário. Não faz sentido que se dedique à escrita porque é evidente que precisa de ler Eça de Queirós antes se atirar ao papel, precisa de conseguir falar do provincianismo sem ser provinciano, a não ser que deseje que as suas histórias se tornem documentos sociológicos, fontes de investigação para o estudo do atraso mental de um país ou de uma época histórica pardacenta e triste. Precisa de deixar de pensar que "os escritores são uns punheteiros" que recusam aos outros o que eles próprios praticam. Um escritor tem de ser vital. Como eram vitais as crianças na descoberta da linguagem, quando interrogavam as palavras e se certificavam da sua adequação ao real que designam. Carlos Tê, licenciado em filosofia, atira para a infância a difícil "questão kantiana do númeno e do fenómeno. Será que os fenómenos existem só quando são nomeados, a realidade existe fora da linguagem?" Bom seria que todos, tal como Vladimiro, procurassem construir um "bosque afectivo", espécie de Tree Power de final de século, onde crescessem as árvores que mais amámos ou que os nossos mortos amavam.

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