A invenção dos lugares

"Antropologia do Espaço", de Filomena Silvano, é um livro com vocação marcadamente didáctica, mas que constitui uma notável síntese (deveríamos dizer "um mapa"?) de uma disciplina (a antropologia) que tem vindo a ganhar (pelos motivos que Jameson enunciava) uma importância crescente na cultura contemporânea.

Num famoso livro de Frederic Jameson, "Postmodernism, or the Cultural Logic of Late Capitalism", publicado pela Duke University Press em 1991, faz-se notar a dada altura o seguinte: "O enfraquecimento dos afectos pode também ser caracterizado, no contexto mais estreito da crítica literária, como o enfraquecimento da grande temática do alto modernismo do tempo e da temporalidade, os mistérios elegíacos da 'durée' e da memória (que podem ser compreendidos como categorias da crítica literária tanto associadas ao alto modernismo como às próprias obras). Entretanto foi-nos dito com frequência que habitamos agora a sincronia e não a diacronia, e penso que é possível argumentar, ao menos empiricamente, que a nossa vida quotidiana, as nossas experiências psíquicas, as nossas linguagens culturais, são hoje dominadas pelas categorias do espaço e não pelas do tempo, como sucedia no período anterior do alto modernismo."E de tal forma isto é assim que há mesmo quem considere hoje o modernismo não como um período histórico, mas como um espaço específico, para o qual a categoria adequada seria a de topologia: veja-se, por exemplo, Vincenzo Vitiello, "Topologia del moderno", ou, entre nós, José Bragança de Miranda em "Analítica da actualidade". Mas isto conduz-nos a enredos que neste momento me parecem indesejáveis.Voltemos assim ao nosso ponto de partida: um pequeno mas oportuníssimo livro de Filomena Silvano, "Antropologia do Espaço", que acaba de sair na editora Celta. Depois de uma investigação de terreno que colocava problemas do maior interesse - e estou-me a referir a "Territórios da Identidade: Representações do Espaço em Guimarães, Vizela e Santa Eulália", também em edição da Celta - surge agora um livro com vocação marcadamente didáctica, mas que constitui uma notável síntese (deveríamos dizer "um mapa"?) de uma disciplina que tem vindo a ganhar (pelos motivos que Jameson enunciava) uma importância crescente na cultura contemporânea. Com uma implicação de ordem geral que o próprio Jameson insinua, embora circunscreva ao domínio da literatura: é que enquanto o tempo estava ligado a uma narrativa da interioridade em que o sujeito se deixava alterar para no final se reencontrar numa instância de auto-reconciliação (o que é, em traços brutais, o modelo hegeliano), o espaço aparece como uma categoria em que o sujeito se exterioriza sem recuperação possível, e se vai assim incluir no âmbito das economias da perda: há sempre algo de nós que fica por recuperar nos espaços que atravessámos e que nos atravessaram, e é essa subjectividade disseminada que vai impregnar de curvaturas e tensões os espaços que outrora aprendemos a medir e desenhar segundo esquadros de tipo positivista.O livro de Filomena Silvano situa-se deliberadamente no campo da antropologia, com inevitáveis incursões pelo urbanismo contemporâneo, mas procura não se perder demasiado pelos territórios da geografia ou da filosofia (aparecem Lefebvre ou Foucault, mas não Heidegger, por exemplo) ou pelos da literatura (não encontramos aqui as já consagradas referências a Calvino, por exemplo). Há, portanto, uma escolha que leva por exemplo a não considerar os trabalhos de Augustin Bercque (particularmente interessantes no confronto entre espaço ocidental/espaço oriental), ou a não referir, no domínio da teoria dos lugares, essa impressionante soma de conhecimentos e reflexões que é "The Fate of Place. A Philosophical History" de Edward S. Casey (University of California Press, 1997).Filomena Silvano começa por nos propor uma abordagem dos clássicos da sociologia (Durkheim, Halbwachs) ou da antropologia (Mauss ou Lévi-Strauss). Vai assim percorrer categorias que ora apreendem o espaço como realidade material, ora o pretendem tratar como representação (e neste plano como representação social associada a processos de identidade). Estabelece-se deste modo por um lado uma homologia entre estrutura social e estrutura espacial, e por outro uma relação entre a memória de um grupo e a sua relação com o peso simbólico e afectivo dos lugares. Invocando o exemplo dado por Lévi-Strauss dos missionários salesianos que, para melhor converterem os índios, resolveram destruir o espaço social das aldeias, porque isto lhes quebrava qualquer capacidade para eles se pensarem na sua identidade (num processo que seria mais tarde retomado por Pol Pot...), Filomena Silvano mostra que "existe um laço indissociável entre a estrutura do espaço e as identidades colectivas".Das aldeias passa para as cidades e seus fascínios com fanáticos das multidões anónimas como Simmel e Benjamin. Surgem assim algumas figuras surpreendentes como "o estrangeiro" e "o passeante", que se diferenciam da tradição do "sedentário" e do "viajante". E percebemos que não é possível pensar o espaço sem ter em conta as mobilidades. O que talvez implique, a curto prazo, não uma sociologia das sociedades, mas uma sociologia que apreenda o que se passa entre as sociedades (como sugere provocatoriamente John Urry em "Sociology beyond Societies - Mobilities for the twenty-first century", Routledge, 2000).Chegamos depois à Escola de Chicago, e em particular a Park e Wirth. Agora mobilidades, posições e distâncias permitem pensar uma noção fundamental para os nossos dias: os guetos. E é através de um retorno à investigação de Evans-Pritchard sobre os Nuer que vamos encontrar as noções de pertença e não-pertença: o que é "ser de", o que é estar num espaço que não é de ninguém. E aqui emerge a interessantíssima noção de não-lugar que Marc Augé teorizou: aviões, salas de aeroporto, auto-estradas, grandes superfícies (espaços não identitários, não históricos, não relacionais). Mas entretanto, com autores por vezes mais universitários, e outros menos institucionais, Filomena Silvano vai dar-nos as etapas fundamentais de uma autonomização teórica da noção de espaço e de uma fundação sistemática da ideia de antropologia do espaço: passamos aqui pelo fascinante contributo de Henri Lefebvre (a quem se devem trabalhos posteriores de geógrafos como Soja e Harvey), mas também por Raymond Ledrut ou Jean Rémy, com a noção de que existem zonas não urbanizadas das cidades e aldeias em quadros de urbanização, e com o programa de retorno aos valores de bairro (como diz Alfredo Marceneiro: "Lisboa toda toda é o meu bairro").Por fim, temos Foucault e as famosas heterotopias, os não-lugares e a sobremodernidade de Augé, e o que aparece não traduzido como "etnoscapes (implicando uma outra noção de fronteira, que poderá desembocar na ideia de "dobra" em Deleuze) em Appadurai (mas será que a noção de "etnoscapes", separada das outras noções propostas por este autor, se torna suficientemente inteligível?).Eis um guia - entre outros possíveis, como sublinha a autora. Mas um guia utilíssimo para múltiplas viagens na cultura contemporânea. Porque cada vez mais a antropologia do espaço excede o espaço tradicional da antropologia.

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