A bola de Berlim comida ao fim da tarde

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ana banha

Tenho para mim que um dos insondáveis mistérios da existência é o que envolve as bolas de Berlim, comidas na praia, num final de tarde de Verão.

Convenhamos: a bola de Berlim é, objectivamente, um bolo vulgar, pedaço de massa frita, recheado de creme amarelo e coberto de açúcar. Não tem a elegância dos scones (claramente um manjar de Inverno, barrados de compota de framboesa e acompanhados de um chá preto forte), a ligeireza dos queques (que casam bem com um galão numa pastelaria de bairro), a dimensão literária das madalenas (recheadas de proustianas recordações de infância) ou o requinte dum mil-folhas (para comer com um garfo, numa esplanada outonal, enquanto se observa o nada que passa, para gáudio do olhar).

Pela minha parte, confesso que se passa um ano inteiro e nunca me ocorre comer uma bola de Berlim. Mas na praia tudo muda: depois de um dia de sol, o corpo está distendido. Ao fim da tarde a maré está baixa e o mar recua, a fugir de nós, deixando à vista o areal que se abre diante dos nossos olhos, palco vazio depois do espectáculo. A luz do sol - mais dourada, quase terna, menos altiva - salpica os despojos do dia. O areal está vazio, partiram os "burgueses neo-barrocos" (de que fala a Agustina), levaram com eles o barulho da incompreensão por não comungarem do rito de que o mar é sacerdote. Então, só então, chega a hora de hipotecar a obsessão escultórica do corpo. Ali, na minha praia, passa um brasileiro, doutor em nada, mestre em tudo, que entoa: "Olha a bolinha da Tia Aurora, creme por dentro, açúcar por fora!".

Inicia-se então o contacto com a essência do mistério. Na praia da minha infância, o Guincho, havia uma senhora toda vestida de branco, qual Iemanjá, que tinha uma caixa quadrada de onde saíam umas prateleiras cheias de bolos. Não me lembro de comer outro bolo na praia, senão as bolas de Berlim. As bolas de Berlim são ligeiramente azeitadas, têm assim um toque de gordura que não se encontra nas outras. Pega-se nelas com um guardanapo de papel branco, daqueles semitransparentes que havia na esplanada das Arcadas do Estoril. Têm um trincar ligeiramente estaladiço, a provar que, no caso em apreço, a Tia Aurora vai fritando as bolas ao longo do dia. Depois, há o açúcar: não é aquele horrível açúcar em pó das pastelarias pretensiosas. É um açúcar grosso, com uma textura que não tem vergonha, que adere aos dedos com se fosse o resto do areal. A bola que se desfaz no palato, que ali morre como fora de nós morre um dia que tem naquele momento a razão da sua existência, não é apenas um bolo.

A bola de Berlim comida na praia, ao final da tarde, é um acto de puro egoísmo onde tudo o resto se eclipsa. Vive só para e pelo ocaso do sol, o silêncio do encantamento e o mar que se transforma do alheio absoluto que sempre é, na ponte que o tempo atravessa para, como diz Sophia, reencontrar a liberdade. Nessa transformação, a que não somos alheios, prova-se que comer uma bola de Berlim na praia é, afinal, um acto litúrgico.

Duarte Alves

Lisboa

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