O mistério sucumbiu à fama

Uma investigação jornalística revelou que a escritora Elena Ferrante poderá ser a tradutora Anita Raja. O mito parece chegar ao fim de forma polémica, lançando a discussão entre o interesse público e o direito à privacidade.

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A tetralogia A Amiga Genial, publicada em Portugal a partir de 2014, conta a história de uma relação de amizade entre duas mulheres Miguel Manso

Invasão da privacidade, desrespeito, voyeurismo, o direito dos leitores de conhecerem a identidade de um autor, uma revelação inevitável. As reacções à notícia publicada domingo pela New York Review of Books acerca da alegada identidade da autora que assina com o nome de Elena Ferrante dividem-se e estão a originar uma acesa discussão sobre o que é direito à informação, por um lado, e o respeito pela vontade de uma autora que escolheu o anonimato, por outro.

Sustentando-se no argumento de que os leitores têm o direito a saber quem é Elena Ferrante, a autora da saga napolitana A Amiga Genial, o artigo da autoria do jornalista italiano Claudio Gatti pretende pôr fim a um dos maiores mistérios da literatura contemporânea.

“Meses depois de uma longa investigação é possível construir um caso sólido sobre a verdadeira identidade de Ferrante. Longe de ser a filha de uma costureira de Nápoles descrita em Escombros, as novas revelações do seu património e registos financeiros apontam para que seja Anita Raja, uma tradutora que vive em Roma, cuja mãe, nascida na Alemanha, fugiu ao Holocausto e mais tarde se casou com um magistrado napolitano”, escreveu a New York Review of Books na edição online de domingo.

A conclusão de Gatti é baseada na consulta dos pagamentos que alegadamente foram feitos pela editora de Ferrante e que o jornalista diz mostrarem que o principal beneficiário deste extraordinário sucesso literário é Anita Raja, 63 anos, que tem uma longa relação com a casa editorial de Ferrante, para onde traduzia literatura alemã. Além disso é mulher do escritor Domenico Starnone, que juntamente com ela estava há anos na lista dos nomes de autores “suspeitos” de serem Elena Ferrante.

Claudio Gatti foi vasculhar os sinais exteriores de riqueza de Anita Raja e do marido. O jornalista conta, por exemplo, como em 2000, após a adaptação ao cinema do primeiro livro de Ferrante, Os Dias do Abandono, Anita Raja comprou um apartamento de sete assoalhadas numa zona nobre de Roma, e em 2011 uma casa na Toscana. Já este ano, Domenico Starnone tornou-se proprietário de um apartamento de 2500 metros quadrados com 11 assoalhadas em Roma, cujo valor se calcula próximo de 1,5 milhões de euros. E escreve Gatti, depois de apresentar muitas contas de vendas, direitos de autor, património: “O trabalho de Raja como tradutora — uma profissão reconhecidamente mal paga — dificilmente pode justificar os seus elevados rendimentos.”  

Parece fechar-se assim, de modo polémico, o círculo à volta de um mito que se foi alimentando a si mesmo e parece ter sido maior do que a literatura, um caso de fama que sucumbiu ao mistério.

“Só se justifica uma investigação jornalística quando está em causa o interesse público. O que importa num autor é a obra e a obra dela é pública. Quando um autor escolhe manter o anonimato, o jornalista não tem dever nenhum de investigar a sua identidade”, referiu ao PÚBLICO Francisco Vale, o editor de Elena Ferrante em Portugal, sobre o artigo também publicado pelo jornal italiano Il Sole 24 Ore, pelo alemão Frankfurter Allgemeine Zientung e pelo francês Mediapart. O editor português da Relógio d’Água começou a publicar a obra de Elena Ferrante em 2014 e afirma que o que o fez comprar os direitos de publicação desta italiana não foi o facto de ela ser uma autora anónima, mas ser “uma boa escritora, uma das grandes narradoras contemporâneas”.

Por sua vez, Ella Sher, a agente espanhola que representa os direitos da obra de Elena Ferrante em vários países, incluindo Portugal, remeteu ontem ao PÚBLICO a sua posição sobre este assunto para as afirmações que o grupo editorial Suhrkamp Verlag já tinha feito em comunicado: “Desde que a nossa autora Elena Ferrante escolheu preservar o seu anonimato, não nos interessa qualquer questão ligada à sua identidade.”

Escombros sairá este mês

O “mistério” Ferrante começou a partir do momento em que os seus livros geraram um culto em todo o mundo. Ela escolheu ser anónima desde que se estreou em 1992 com a novela Um Estranho Amor. Seguiram-se Os Dias do Abandono e A Filha Obscura, reunidos em Portugal no volume Crónicas do Mal de Amor (2014).

O interesse, no entanto, só disparou em 2013, após a publicação em inglês do primeiro volume da tetralogia A Amiga Genial, a história de uma relação de amizade entre duas mulheres, com acção na cidade de Nápoles. Um artigo então assinado pelo crítico literário James Wood na New Yorker apresentava Ferrante como uma das vozes mais estimulantes da actual literatura e chamava a atenção para o carácter privado da sua existência. A chamada “saga napolitana” fechava pouco depois com História do Nome Novo (2015) História de Quem Vai e de Quem Fica (2015) e História da Menina Perdida (2016).

Recapitulando, em 24 anos, Elena Ferrante publicou três novelas, quatro romances, um livro para crianças e La Frantumaglia (onde reúne entrevistas e ensaios e que vai ter actualização com edição em Portugal ainda este mês, sob o título Escombros). Foi traduzida para 40 países e vendeu qualquer coisa como quatro milhões de livros. Tudo sem que ninguém conhecesse o seu rosto. Seria um homem, um homem e uma mulher, um grupo de escritores a assinar com o pseudónimo Ferrante? A especulação aumentava, escreviam-se artigos baseados em suspeições e ia-se escrevendo um romance paralelo à literatura assinada por alguém de quem se sabia ser de natural de Nápoles e pouco mais.

Foi assim até domingo. Sandra Ozzola e Sandro Ferri, editores italianos da obra de Ferrante e os poucos que conhecem a identidade da escritora, não desmentiram a notícia, mas questionaram a base que sustenta a investigação, ou seja, utilidade pública do artigo e o método. Sandro Ferri afirmou-se mesmo chocado com a tentativa de identificar alguém que escolheu viver no anonimato e que tem como único compromisso a literatura.“Acho lamentável o jornalismo que indaga a privacidade e trata o escritor como um camorrista.”

É o método que Francisco Vale também questiona, concordando que a probabilidade de a autora manter o anonimato ia diminuindo, mas era algo que a própria Elena Ferrante geria. Escolhia a quem e como dar entrevistas, muito poucas e quase sempre por email, revelando detalhes que ajudavam a construir uma biografia que alimentavam o mito.

Numa entrevista ao PÚBLICO em Julho de 2015, a escritora justificava essa a sua opção pelo anonimato declarando: “O caminho das minhas obras é o meu caminho.” E acrescentava: “Os leitores contentam-se com ele, aliás, alguns até me escrevem pedindo que não revele nunca outros caminhos mais privados e, por isso, menos interessantes. Os meios de comunicação é que, por dever de ofício, não se contentam com as obras, querem caras, personagens, protagonistas excêntricos. Mas pode-se passar tranquilamente sem o que os meios de comunicação pretendem.”

“Ela sempre se manteve fiel à ideia de que os livros têm vida própria, que valem por si só”, adianta Francisco Vale, que conta que descobriu Elena Ferrante quando leu Os Dias do Abandono, em 2004. Foi o primeiro livro de Ferrante a ser publicado em Portugal, então com a chancela da D. Quixote. “Quase não vendeu, passou completamente despercebido”, recorda a editora Cecília Andrade, que na altura sabia apenas que Ferrante era uma “escritora italiana que escrevia sob pseudónimo”.

Dez anos depois, Vale decide recuperar esse livro esquecido e publicar toda a obra de Ferrante. E é ele quem diz: “Há autores que não querem ser conhecidos. Têm esse direito, há jornalistas que não respeitam isso. Provavelmente alguns leitores têm curiosidade, mas acho que seriam poucos os que sobrepõem essa curiosidade à vontade da autora.”

A opinião é partilhada por Cecília Andrade. “É um desrespeito pela vontade da autora. A sua vida é privada”, considera a editora sem rejeitar a ideia, no entanto, de que a autora possa ter “usado” o anonimato para alimentar o mito, mas isso também é literatura. “Investigar património, publicá-lo, para revelar uma identidade, é, neste caso, uma devassa”, acrescentou. E Vale conclui: “Era um belo mistério.”

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