Atenção: isto não é um teste

Quem justifica o renascimento do nacionalismo hoje não terá como deter os excessos do egoísmo nacional amanhã.

Há dias em que o “regresso da história” parece apenas uma espécie de aula prática para uma comemoração centenária subordinada ao tema: como, e por que raio, começou a I Guerra Mundial? Nesses dias dá vontade de levantar os braços e pedir à história para parar porque já percebemos.

Ontem foi um desses dias. Erdogan anunciou suspender a participação da Turquia na Convenção Europeia de Direitos Humanos — o enquadramento legal que tem ajudar a garantir o estado de direito em mais de quarenta países europeus desde o fim da II Guerra Mundial ou, em alguns casos, da Guerra Fria. Do outro lado do Atlântico, Donald Trump revelou ter grande admiração por Erdogan “por ter conseguido dar a volta tão depressa” — com prisões e purgas a milhares de pessoas — ao golpe que o tentou depor. No passado Trump descreveu palavras de Putin como “uma obra-prima”; agora declarou ao bom estilo da máfia que só defenderia países invadidos pelo líder russo se esses países tivessem “cumprido com as suas obrigações perante nós”. Ou seja: perante os interesses financeiros dos EUA, que é o único critério que Trump consegue invocar de forma consistente. Não as obrigações perante os direitos humanos, a comunidade internacional ou os tratados entre estados, mas o interesse descarnado, puro e simples. A delegação de brexiteers vitoriosos e outros nacionalistas europeus à convenção de Trump nos EUA compreende e aplaude esta atitude.

Há três anos publiquei aqui uma série de crónicas fascinadas com o prelúdio à I Guerra Mundial, a sua incompreensibilidade, e os paralelos com o nosso tempo, que eram muitos. Da prevalência das teorias da conspiração ao menosprezo pelo interesse comum, da afirmação do egoísmo nacional puro à violação das normas humanitárias, das fantasias imperiais à irresponsabilidade política, tudo estava lá, com uma exceção: a militarização crescente das sociedades. Passado só três anos, porém, esse hiato começa a ser preenchido a boa velocidade e a nossa diferença com o pré-Grande Guerra já não é tão grande.

O único problema é que isto não é um ensaio de incêndio do qual se sai com um suspiro de alívio e um pouco mais de preparação para qualquer eventualidade. Esta é a vida real de milhões de pessoas, à beira do abismo. Este não é um teste de história para ver quem fica bem aos olhos da posteridade, mas uma questão de moralidade e decência para com o presente da humanidade concreta. O passado serve apenas para nos iluminar contra os erros presentes.

Quem justifica o renascimento do nacionalismo hoje não terá como deter os excessos do egoísmo nacional amanhã. Essa justificação terá, como sempre, consequências: não dá para sair do comboio quando a viagem se tornar desagradável.

O desfazer das organizações internacionais, com todos os seus defeitos e virtudes, terá também consequências. Tal como no passado, diz-se agora que não há lágrimas a verter pela “decadente” União Europeia, a “hipócrita” ONU ou a “ineficaz” Convenção Europeia de Direitos Humanos. Pois está claro. Também ninguém chorou pelo fim da Sociedade das Nações — mas pelo que veio depois.

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