O escritor quer apagar-se da escrita

James Salter regressa à edição em Portugal com um volume de contos que trazem muito do melhor deste mestre da clareza da literatura norte-americana.

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A biografia está presente em muito do que James Salter ficciona FOTO: Corina Arranz

James Salter teve pela primeira vez edição em Portugal em 2015, quase a completar 90 anos e poucas semanas antes de morrer. Aquele a que muitos chamavam – com carga mais ou menos pejorativa –  “um escritor de escritores”, devido à admiração que suscitava entre os seus pares em conseguir ser um sucesso de vendas, chegava com um romance com muito de autobiográfico. Tudo o Que Conta narra a vida de um homem que combateu na II Guerra Mundial e o modo como essa experiência determinou o resto, ou seja a tentativa de normalidade ou de excelência, a frustração, a ambição, o amor, enquanto se movia pelo mundo da edição em Nova Iorque. O romance era um exemplo da escrita de um homem que pensa cada palavra ao ponto de ela lhe soar natural, ser a palavra certa dentro de uma frase para um cumprir um sentido, suscitar um efeito ou emoção sem que isso nunca se sinta como artifício literário.

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A colectânea de contos que agora se edita por cá, um ano depois dessa estreia, volta a revelar a capacidade invulgar de Salter em falar do quotidiano como se fosse ele o seu criador. São 22 histórias retiradas de dois livros anteriores – Dusk and Other Stories (1988) e Last Night (2005) –  publicadas em português com o título A Ultima Noite e Outras Histórias. No prefácio, o irlandês John Banville compara o talento de Salter para trabalhar esse quotidiano a mestres como Tchékhov, James Joyce ou Flaubert. “Estes maravilhosos artistas não escrevem sobre a realidade: a sua obra é a própria realidade. Ao lê-los, esquecemos que estamos a viver uma versão do mundo que é altamente trabalhada e mediada”, escreve Banville, referindo-se a Salter como um “magistral cronista de vidas quotidianas”.

A biografia está presente em muito do que James Salter ficciona. Não só nos romances como nos contos. Há quase sempre uma paisagem, um ambiente ou uma experiência que transporta para a literatura. Banville refere uma reunião de antigos alunos de West Point, a escola militar que Salter frequentou, e que terá inspirado o conto Depois da Corrida, mas há também uma forma de olhar a morte ou o fim da vida, ou simplesmente o fim, qualquer que ele seja, o envelhecer da pele ou ou de um sentimento.

Isso está no conto de abertura, Am Strande von Tanger, quando um pássaro morre, ou no último, A Última Noite, quando uma mulher perante a doença decide antecipar o desenlace. “Era a noite que tinha escolhido. Pousada num pires, dentro do frigorífico, estava a seringa. O médico tinha fornecido o conteúdo.”

É uma escrita sempre a sugerir imagens. Algumas surgem recorrentes, como ecos enquanto a narrativa prossegue. Alucinantes ou luminosas, ambíguas, tão precisas quanto devem ser as imagens literárias, sugerindo darem tudo quando o que está a acontecer é o leitor a preencher o vazio que essas pakavras deixam à sua própria imaginação. Em O Cinema, escreve: “Às vezes, há uma única imagem que sobrevive a tudo o resto, até os nomes caem no esquecimento”, e é como se estivesse a falar do que pode sobreviver na literatura. Na sua também:  “Há aquele tipo de escritor que encontramos numa sala da biblioteca a autografar o seu romance. Tem o indicador da cor do chá, o sorriso recheado de dentes estragados. No entanto, percebe de literatura. Os seus ossos são feitos dela”, arranca o conto Via Negativa. Ou no modo cirúrgico como nos fixa num ambiente. “Não há sol. Há apenas um silêncio branco”, ainda em Am Strande von Tanger.

Talvez seja a linguagem – precisa, límpida, orgânica, aparentemente simples – aliada ao ritmo, o que torna a escrita de Salter tão sedutora e fácil de seguir como um fio de água. No entanto, isso é pura ilusão literária e tão eficazmente criada que nos seus romances e nos seus contos tudo parece passar-se quase sem a intervenção de um escritor. “Dos anos na Cidade do México indiferentes à degradação. Era a sensação de divindade que o fazia sentir-se forte. Via o pescoço dela inclinado para a frente ea elegante curvatura da nuca. Via o traçado ténue de ossos como pérolas que lhe corriam pelas costas suaves. Via-se a si mesmo, à pessoa que era dantes.” É o início de Cometa, de uma lua-de-mel que desafiou os planos felizes.

Tudo flui, com paragens obrigatórias. São os tais ecos, o que não nos larga na aparente simplicidade. Banville descreve muito bem essa sensação ao ler James Salter, compara-a à de uma unha a prender na seda. Na caraterização do desejo de um homem por uma mulher, ainda em O Cometa, no modo como fala do “incómodo” que era ser judeu numa Nova Iorque cheia deles, no erotismo na ironia. Ler estes contos de salter é também perceber não apenas a evolução de um escritor, como da temática, reflexo por outro lado da mutação da sociedade americana que passa de uma atenção aos desajustes do indivíduo a uma sensação de derrota colectiva. Ele era, no entanto, um observador e conhecedor da realidade europeia. Viveu na Europa, lia autores europeus, viajava regularmente até aqui, e a acção de muitos destes contos passa-se em cidades da Europa. Com mulheres jovens, homens a cair na ambição, a disputa pessoal, o submundo, os golpes, o desalento de uma mulher faxe a um corpo envelhecido.

A escrita de James Salter é sobre um banal que ele supera sempre que o elege como tema. Em O Crepúsculo, o leitor conhece a Sra Chandler, “sozinha junto da vitrina” numa das suas saídas de rotina, e mergulha subitamente no seu íntimo. “Era uma mulher com um certo estilo de vida. Sabia oferecer jantares, tratar de cães, entrar em restaurantes. Tinha uma forma pessoal de responder a convites, de se vestir, de ser igual a si própria. Hábitos incomparáveis, poder-se-ia dizer. Era uma mulher que havia lido livros, jogado golfe, ido a casamentos, que tinha boas pernas, que havia passado maus bocados, uma excelente mulher que agora ninguém queria.” 

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