Os Pixies tocaram os clássicos, Robert Plant mostrou como mantê-los vivos

Um primoroso concerto do vocalista dos Led Zeppelin marcou o início do Nos Alive. Dia esgotado para ver também uns Pixies em piloto automático e a gigantesca pista de dança criada pelos Chemical Brothers.

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Naquele momento, toda a multidão, ou seja, os 55 mil presentes no Passeio Marítimo de Algés, ou seja, o máximo de espectadores possível, ou seja, também o primeiro dia de Nos Alive, quinta-feira, registou lotação esgotada, como já esgotados estavam os bilhetes para os dois seguintes; naquele momento, dizíamos, todos parecem convergir para o palco principal. Do outro lado do recinto, no palco Heineken, os belgas Soulwax tinham terminado o seu concerto. No palco Nos Clubbing, os canadianos Junior Boys davam por encerrada a sua hora de synthpop e electropop, tudo canção feita batida para pista de dança. Naquele momento em que é uma da manhã, aqueles concertos parecem ter sido preparação para o que se segue.

Todos caminham portanto na mesma direcção. Uma massa de gente em busca daquilo. Surge um dançarino feito de néon no ecrã, ouve-se a voz samplada (“hey boy, hey girl”), liberta-se o ritmo (“here we go!”) e é ver um sem-número de gente aos saltos, absurdamente feliz, genuinamente eufórica com a chegada dos Chemical Brothers. A banda que editou no ano passado o muito bem recebido Burn in the Echoes encerrou com estrondo o palco principal. Não foi preciso rasgo. Apenas o cuidado posto na produção dos vídeos em ecrã, mais fotografados em smartphone do que as bandas que por ali tinham passado anteriormente, e “apenas” o polvilhar certeiro da batida incessante com os clássicos que justificam a festa: o minimal Do it again, ainda a início, o trepidante Galvanize ou o sempre inspirador Block rocking beats, mesmo no final. Eficiente, como sempre, o concerto do duo inglês. Não era o fim da festa: os Soulwax ainda assumiriam a sua outra vida, enquanto dupla 2 Many Djs, no palco Heineken, e os Throes + The Shine levariam a sua inspirada música pan-africana insuflada de energia rock, já perto das três da madrugada, ao palco Nos Clubbing. Não era o fim da festa, mas foi o momento escolhido para o grosso do público recolher a casa. Ou ao hotel, ao hostel, ao alojamento de aluguer temporário ou onde quer que estejam a pernoitar as dezenas de milhares que viajaram do estrangeiro para assistir ao Nos Alive. Já levavam algumas histórias para contar. A de mais um concerto dos Pixies. Ou a do regresso a Portugal de um inspirado e inspirador Robert Plant.

Os primeiros, com a baixista Paz Lechantin definitivamente integrada como substituta de Kim Deal e com o anúncio ainda fresco de um novo álbum (tem por título Head Carrier e será editado a 30 de Setembro), deram um concerto competente mas sem chama. Arrancaram com Bone machine, não demoraram a chegar a Monkey's gone to Heaven e mostraram o nervo punk da nova Um chagga laga (nervo punk, acelerado e neurótico, que se revelou igualmente nas outras, poucas, novidades que passaram pelo concerto).

De negro os três da frente – Frank Black, Joey Santiago e Paz Lechantin. Menos monocromático o baterista David Lovering, lá atrás. E a sensação de que os Pixies vivem numa encruzilhada. Há vida nova e música igualmente nova para mostrar que a história não ficou guardada lá atrás, mas é precisamente essa vida, a registada entre 1987 e 1993, que toca o público que os vê e que canta Debaser, Where is my mind ou Here comes your man como propriedade sua (e é, naturalmente) e que segue com entusiasmo a torrente eléctrica, cortesia de Joey Santiago, de Vamos!. Que fazer? No caso destes Pixies, tocar as canções todas do alinhamento com empenho de profissional e deixar a resposta a essas questões para o público. Que respondeu inequivocamente: é muito bom que os seus heróis queiram continuar a fazer música, mas, na verdade, o que interessa é o reencontro com os clássicos. Foi isso, só isso (ou ainda bem que assim foi, dependendo da perspectiva), que fez a banda de Surfer Rosa. A surpresa tinha acontecido antes.

Durante a tarde, descobrimos por onde andavam os 31 mil vindos do estrangeiro para o Nos Alive. Estavam todos ali, no Passeio Marítimo de Algés, a transmitir a inédita sensação de, num festival português, estarmos em minoria entre o público que assistia à pop muito 80s, muito solar, dos The 1975, ou entre aqueles que passeavam na rua com imitação de calçada portuguesa e fachadas a replicar edifícios pombalinos onde se ouviram o fado de Marco Rodrigues e Raquel Tavares ou, já à noite, um concerto dos Dead Combo.

Belgas de bandeira às costas e bandeira pintada no tronco nu, para termos a certeza de que eram mesmo belgas. Ingleses imediatamente identificáveis pelo sotaque e franceses com a camisola da sua selecção sobre um fato de tigre ou francesas com os lábios pintados com as cores da bandeira tricolor. Um mosaico europeu reunido em Algés para um festival de música. Todos juntos, ajudaram a celebrar o culto que tem por cá John Grant e contribuíram para que os Wolf Alice, banda revelação britânica sintonizada com o college rock da década de 1990, percebessem, entre muita euforia e um palco Heineken preenchidíssimo, que poderão transformar-se brevemente em Portugal em algo mais do que banda de culto.

Quando o concerto da banda da vocalista e guitarrista Ellie Roswell terminou, já tinha acontecido. No outro extremo do recinto agora coberto de um tapete verde que não só elimina o indesejável pó como serve de confortável apoio a corpos que vão pedindo descanso – muito bem-vinda novidade na edição deste ano –, assistíramos a algo especial.

Robert Plant tem 67 anos e um ilustríssimo passado atrás de si enquanto vocalista da banda que definiu em grande parte o rock'n'roll e suas mitologias na década de 1970. Mas aquele homem que surge em palco, camisa preta de cantor country, barba e cabelo ainda longo apanhado nas costas e uma voz, não demoraríamos a perceber, capaz da expressividade de outrora, mesmo se não atinge já os agudos impossíveis de outras décadas, continua em busca de algo novo, continua curioso acerca do que contém em si e do que descobre no outro. Percebemo-lo nas canções dos Led Zeppelin que preencheram uma porção generosa do alinhamento (uma Lemon song devolvida ao balanço blues foi a primeira). Percebemo-lo em canções do seu percurso a solo, como Rainbow.

Acompanhado de uma banda extraordinária em que se destacam o guitarrista britânico Justin Adams e o multi-instrumentista gambiano Juldeh Camara, Robert Plant, que é agora mais sábio ancião sem misticismo que sedutor assolapado, ou seja, um músico de uma imponente dignidade, consciente da sua idade e do seu tempo, remodelou a sua música e procurou-lhe novos significados. Black dog surgiu menos bombástica, povoada de electrónica atmosférica e marcada pelo ritti, o violino de uma corda em que Camara é mestre. A belíssima balada que é Babe I'm gonna leave you foi transportada por Liam Tyson para a Andaluzia do flamenco. Dazed and confused teria Adams e Camara costas com costas, guitarra contra ritti, enquanto Plant se entregava à letra como se tivesse acabado de descobrir aquela canção feita viagem sensorial que canta desde 1969.

Não se trata de criar novas versões irreconhecíveis, como tanto gosta de fazer Dylan, por exemplo, mas de criar novos espaços nas canções, mostrando-nos nelas novos mundos. Quando anuncia uma canção como uma viagem ao Mississípi de 1941 e ao blues de Bukka White e logo ouvimos um sintetizador cósmico e samples que não soariam deslocados no trip-hop de Bristol que interessa, torna-se clara a irrequietude criativa que ainda o guia.

Quando o clássico I just wanna make love to you de Muddy Waters surge como porta de entrada para essa Whole lotta love que põe em sobressalto dezenas de milhares, quando essa Whole lotta love é conduzida até psicadelismo magrebino, torna-se óbvio: o quase septuagenário Robert Plant é um admirável e talentosíssimo criador de pontes. Mostra-nos a música que conhecemos tão bem como matéria tão mais viva quanto lhe for recusada a cristalização enquanto peça museológica. Despedir-se-á, em encore, com Rock'n'roll, outro dos diversos hinos dos Led Zeppelin. Soa a rockabilly dos anos 1950 onde foram enxertados genes do Oeste africano onde nasceu Juldeh Camara. Nas mãos de Robert Plant, rock'n'roll não significa exactamente aquilo que as enciclopédias definem. Não é necessariamente mais. Mas ambiciona ser mais. Percebemo-lo num concerto magnífico, destaque deste primeiro dia de Nos Alive.

O festival continua esta sexta-feira, com o aguardado regresso dos Radiohead como grande chamariz. Destacam-se ainda em cartaz os Tame Impala, Father John Misty ou Courtney Barnett. Sábado, o dia de encerramento, traz Arcade Fire, Grimes, Band Of Horses ou PAUS.

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