Há vida para lá do défice

Se bem entendo o que se passou ontem em Estrasburgo, pode afirmar-se com certa cautela que não serão aplicadas sanções a Portugal e a Espanha por incumprimento na meta do défice. O que não quer dizer que acabe o psicodrama das sanções, como deveria.

As declarações de Pierre Moscovici sobre “a leitura inteligente das regras” e as notícias saídas em alguns jornais (nomeadamente o PÚBLICO) parecem indicar o seguinte cenário: a Comissão registará somente o incumprimento do défice, como decorre da sua obrigação legal. A bola passa para a reunião dos Ministros das Finanças da UE (Ecofin) mas sem recomendação de sanções. Se o Sr. Schäuble assumir mais ainda a sua agenda punitiva e optar pelo caminho legalmente dúbio de exigir uma recomendação de sanções à Comissão (e conseguisse maioria para isso), teria de esperar que na volta do correio o Ecofin considerasse as sanções “oportunas e adequadas”. Ora, esta aprovação teria de ser feita por maioria qualificada, e se Portugal e Espanha juntarem os votos dos países que já os apoiaram (França, Itália, Grécia e outros ainda) terão uma minoria de bloqueio contra as sanções. Se as sanções não morressem agora morreriam mais adiante — o que deixa então em aberto a questão da sua eficácia como arma de pressão política.

Se as coisas correrem como descrito acima, esta será uma derrota de todos os que, interna e externamente, assumidamente ou não, gostariam de ver o governo português a descarrilar.

Em minha opinião (e voto), a Comissão nunca deveria ter recebido poder para sancionar as contas dos estados. O seu papel deveria ser gerir um orçamento da UE reforçado em tempos de crise. Os dois níveis orçamentais — nacional e comunitário — deveriam estar bem separados, devendo eventuais conflitos entre eles ser resolvidos no Tribunal de Justiça da UE. Mesmo na situação presente, contudo, é possível tirar lições de todo este processo das possíveis sanções.

E a principal lição para mim é: Portugal não se pode deixar acantonar.

Confirme-se ou não a notícia de que não haverá sanções propostas pela Comissão Europeia, prossiga ou não o psicodrama, nós não podemos ser na UE o país que discute duas décimas do défice e uma multa. Mesmo que nos queiram empurrar para esse papel, a UE está em convulsão e Portugal não pode deixar de tomar posição. Nunca foi tão verdade, na Europa de hoje, que “há vida para lá do défice”.

Alguns exemplos. Deve a Comissão ser uma instituição de burocratas ou estar mais sujeita aos governos nacionais, como defende o Sr. Schäuble? Ou não deveria Portugal defender a responsabilização democrática da Comissão já a partir das próximas eleições para o Parlamento Europeu? Propomos um programa de reação ao Brexit através do investimento público ou ficamos calados? Tomamos a linha da frente de uma Europa Social ou ficamos numa posição defensiva em relação à Europa austeritária? Sem Democracia Europeia não pode haver Europa Social, e sem Europa Social nem a própria UE sobreviverá.

Não podemos ter um Portugal acantonado. Um país que concentra tudo nas sanções fica mais vulnerável — até em relação às próprias sanções. Neste momento decisivo, Portugal tem de sair em defesa da Europa em que acredita.

Historiador, fundador do Livre

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