“Caraças, é uma vitória. Já não somos pessoas esquisitas”

O paradigma mudou. Técnicas médicas como a inseminação artificial saem do reino da doença para passarem a ser acessíveis a mulheres saudáveis sem parceiro. O Sistema Nacional de Saúde vai ter de abrir as portas. Mas há problemas. Este ano o banco público de gâmetas só teve dois dadores de esperma.

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Os gémeos de Teresa Ramalho nasceram com esperma de um dador anónimo Fernando Veludo/NFactos

“Caraças, é uma vitória. Já não somos pessoas esquisitas. Já somos gente.” Porque era ilegal em Portugal, há cerca de quatro anos Teresa Ramalho foi a Espanha engravidar por inseminação artificial com esperma de um dador anónimo. Sairam gémeos, iguais de cara, mas um moreno de cabelo encaracolado e o outro de cabelo alourado e liso. Do dador sabe apenas o grupo sanguíneo e que foi escolhido pela clínica em Vigo para se parecer o mais possível consigo, que é morena, tem o cabelo ondulado e  os olhos castanhos.

A quem foi contando a história da origem espanhola dos filhos Eduardo e do Henrique, que vão fazer três anos em Julho, ouviu muitas dúvidas, “mas porque é que tiveste de ir a Espanha?”. “As pessoas não sabiam que não se podia fazer em Portugal. Agora passaram a saber que é legal”. Quando soube da aprovação no Parlamento do acesso a estas técnicas a mulheres sem parceiro masculino, Teresa sentiu que a sua opção de há quatro anos se tornou, de repente, “mais normal. Deixa de ser um bicho de sete cabeças. Abre mais as mentes.”

Ela própria evoluiu na sua forma de pensar. Teresa Ramalho, que é consultora imobiliária e tem 36 anos, sempre quis ter filhos mas foram-se sucedendo as relações que iam falhando. Tinha um namorado e acabava, tinha um namorado e acabava, “por culpa minha”, admite, “eu não tinha paciência, só queria era ficar sozinha.”

Mas isto de ir por sua conta a Espanha fazer uma inseminação artificial para ter um filho parecia-lhe, aqui há uns oito anos, uma coisa demasiado estranha. Por isso, já com a certeza de “não queria uma relação, queria um filho” decidiu avançar sozinha, mas pelo método natural. Escolheu um homem, “pensei que podia ser um bom pai. Infelizmente escolhi mal. As coisas com o pai do meu primeiro filho deram tantos problemas que no segundo decidi que não queria ter um pai.” Daí a opção de ir a Espanha.

Hoje não tem dúvidas. Tem um filho de sete anos que conhece o progenitor, “um pai ausente”, que não o vê há mais de um ano, que sofre e se pergunta “porque é que o meu pai não vem ter comigo?”. No caso do dador dos gémeos, não há pai, “há um dador anónimo, não existe, não há sentimentos.”

O recurso a técnicas laboratoriais para o tratamento de casais inférteis iniciou-se oficialmente em Portugal em 1985. Mas a lei que veio regular a sua prática só surgiu em 2006. Ficou então definido que as técnicas de procriação medicamente assistida, onde se incluem, por exemplo, a técnica mais simples da inseminação artificial e outras mais complexas como fertilização in vitro, só são aceites e legais “como método subsidiário, e não alternativo, de procriação.”

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Cerca de uma década depois da criação da lei, o Parlamento veio, na sexta-feira, aprovar um regime jurídico que revoluciona por completo este paradigma, que tinha como base a existência de uma doença (o diagnóstico de infertilidade de um dos membros do casal), e um modelo heterossexual, que pressupunha um pai e uma mãe, casados ou a viver em união de facto.

Com a alteração legislativa, passarão pois a ter acesso a estas técnicas médicas mulheres sem parceiro masculino (sendo indiferente a sua orientação sexual e estado civil), saudáveis, passando o recurso a estas técnicas a depender da opção da mulher. Na prática, a PMA deixa o reino da doença e passa a ser “um método complementar de procriação”, lê-se no projecto de lei do Partido Socialista.

O diploma consensualizado entre o PS, o BE, o PAN e o PEV ainda tem de ser promulgado pelo Presidente da República e, depois, terá de ser regulamentado em 120 dias. Foi também aprovado um diploma que legaliza a gestação de substituição em situações de saúde limitadas (como a ausência de útero da mulher) e a título gratuito.

Portugal vai assim tornar-se parte de um grupo de países europeus que já permite o acesso a estes preocedimentos a mulheres sem parceiro. Num estudo feito pelos investigadores da Universidade de Oxford, Patrick Präg e Melinda C. Mills, publicado no ano passado na Families and Societies, um consórcio internacional de investigação na área da família, de 17 países da União Europeia analisados, nove (Dinamarca, Finlândia, Bélgica, Reino Unido, Grécia e Espanha e os países de Leste Bulgária, Hungria e Letónia) permitem o acesso destas técnicas a mulheres sozinhas. Neste grupo de países, só a Hungria e a Grécia excluem as lésbicas. Países como a França, a Áustria, a Irlanda e a Itália proíbem estas técnicas a mulheres sozinhas, exigindo a existência de um relação heterossexual “estável”, ou seja, um casamento ou uma união de facto, como acontecia até agora em Portugal.

Mil euros por inseminação

Mas com “o abrir desta porta” começam agora as questões de como se vai colocar de pé este “edifício, nas palavras de Carlos Calhaz Jorge, responsável da Unidade de Reprodução Humana do Hospital de Santa Maria, em Lisboa.

Primeira questão a resolver: tratando-se de mulheres saudáveis, deve o Sistema Nacional de Saúde (SNS) prestar este serviço? Os especialistas contactados pelo PÚBLICO são unânimes: sim, não existe outra opção. Esta é a única forma de garantir a igualdade das mulheres no acesso a estas técnicas, independentemente do seu poder económico.

“Parece-me lógico, por uma questão de justiça social e de equidade”, continua o médico. Caso contrário, seriam empurradas para o sector privado apenas as que pudessem pagar. Numa clínica privada, a inseminação artificial pode andar pelos mil euros (excluindo consultas). Teresa Ramalho recorda que só conseguiu engravidar à segunda tentativa e que tudo lhe saiu por três mil euros (1500 euros por inseminação), fora as viagens Porto-Vigo. “Se fosse legal em Portugal podia ter poupado.”

A presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, Teresa Almeida Santos, concorda que não pode haver uma lei que cria um direito “só no privado”, sob pena de se criar uma situação de “discriminação”.

Partindo do pressuposto de que estas novas beneficiárias terão então resposta no sistema público de saúde, como vai ser posto em prática? A questão aqui é como se cria um equilíbrio “entre pessoas com problemas de saúde e os direitos destas novas beneficiárias, neste “novo campo de aplicação da medicina”, diz Carlos Calhaz Jorge.

E, aqui, está tudo em aberto. “Haverá listas paralelas? [para as mulheres saudáveis]”, terão os casais inférteis prioridade face a mulheres saudáveis? Haverá critérios de idade para cada subgrupo? Deverá haver diferenciação no pagamento?

Teresa Almeida Santos faz a analogia com a cirurgia estética: Num sistema de saúde pago pelos contribuintes, considera-se legítimo que seja dada prioridade a um doente com queimaduras face a uma doente que procura uma cirurgia de redução mamária.

A presidente da Associação Portuguesa de Fertilidade, Cláudia Vieira, diz que apoiaram o alargamento da lei, de modo a torná-la mais inclusiva, mas o objectivo da associação é claro: apoiam pessoas doentes e parece-lhe que é indiscutível que os casais inférteis em lista de espera devem ter prioridade. O parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida a propósito desta alteração refere também que, "em situação de recursos limitados, deverá ser dada prioridade às situações de infertilidade."

Cláudia Vieira afirma que estas mulheres não devem ser “empurradas para o privado”, mas nota que os centros públicos “já não são capazes de dar resposta aos casais com razões de saúde”. Alguns esperam dois anos em listas de espera em centros públicos que não tem capacidade de resposta. Os centros do Sul (que inclui a zona de Lisboa) estão mais sobrecarregados do que os do Norte.

A entrada de novas beneficiárias pressupõe um grande investimento nesta área e não pode prejudicar quem está à espera, quase no limite de idade, sublinha. “A lei mudou, o SNS também tem de mudar”.

Teresa Almeida Santos concorda: “Não há resposta adequada no SNS para os actuais casais inférteis. Estamos a tentar fazer uma coisa muito moderna sem condições. É preciso racionalizar recursos. Tem de haver reflexão.” Uma hipótese seria criar um tempo de espera definido, digamos um ano, ao fim do qual as mulheres sem resposta poderiam ser enviadas para o privado com comparticipação do SNS.

Eurico Reis, presidente do CNPMA, acha que os custos devem ser diferenciados para os casos em que existe “uma justificação social e não médica para que o SNS trate estas mulheres”. Está convencido de que o Ministério da Saúde vai acolher estas novas beneficiárias no SNS.

Tendo-se pronunciado a favor do novo modelo num parecer do CNPMA, deixou expresso, em declaração de voto, que as novas beneficiárias devem pagar “o custo real dos procedimentos”, ao contrário das mulheres inférteis. Estas verbas deveriam ser depois revertidas directamente para reforçar a capacidade de resposta dos centros públicos de procriação medicamente assistida, em vez de ficarem diluídas no Orçamento do Estado, ajudando assim directamente as mulheres inférteis, defende.

“Os meios são finitos. Não podemos fingir que a realidade não existe: há mulheres doentes e há outras que não são doentes e têm direito a fazer as suas escolhas e a sociedade dá-lhes esse direito. Não podemos é tratar por igual o que é distinto.”

Depois há problemas práticos. Teresa Almeida Santos diz “em bom português, sem ovos não se fazem omeletas. O banco público não tem dadores [de esperma]”. Existe um único banco público de gâmetas (esperma e ovócitos), que na prática não é aberto a todos os centros públicos, funciona na Maternidade Júlio Dinis, que pertence ao Centro Hospitalar do Porto, e não tem autonomia. Desde que abriu portas, a 2 de Maio de 2011, e até ao final de 2015, candidataram-se a dadores de sémen 100 homens, dos quais 22 viram o seu material utilizado, refere a Lusa. A viabilidade dos dadores depende de factores como a compatibilidade do grupo sanguíneo e terem traços físicos em conformidade com o casal candidato.

O banco não tem capacidade de resposta para os actuais casais. Não há dadores, enquanto em Espanha existem, diz a presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução. Porque é que não há dadores em Portugal? “É uma questão cultural?” Ou será porque em Espanha as técnicas já são acessíveis a mulheres sozinhas desde a década de 1980? Face a esta incapacidade, deverá Portugal passar a importar esperma do estrangeiro?, questiona a médica. É o que fazem as clínicas privadas.

A falta de dadores é de tal forma um problema que a própria Associação Portuguesa de Fertilidade lançou, em Abril deste ano, por sua iniciativa, uma campanha nacional de angariação de dadores junto de estudantes universitários. Mandaram folhetos e cartazes para 104 associações de estudantes de Norte a Sul do pais, explica Cláudia Vieira. Ainda não têm retorno do sucesso da campanha.

A presidente do banco público de gâmetas, Isabel Sousa Pereira, diz que não sentiram qualquer impacto da campanha. Desde o início do ano até Maio tiveram apenas dois dadores, refere ao PÚBLICO. “Não é nada”. E que actualmente não tem dadores suficientes para permitir a distribuição pelos centros públicos.

“As pessoas vêm as notícias, criaram-se expectativas. As pessoas começaram a telefonar. Querem saber mais. Não temos respostas”, diz Teresa Almeida Santos.

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