A educação do escritor que pergunta o que é ser escritor

Atticus Lish tem um nome que vem da literatura, mas ignorou quase tudo sobre esse mundo até há pouco. Afastou-se da infância privilegiada, viveu em bairros pobres, aprendeu mandarim e venceu o PEN/Faulkner com Preparação para a Próxima Vida, livro tão poético quanto político.

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Filho do célebre editor americano Gordon Lish, Atticus viu o seu primeiro – e até agora único – romance ganhar um prémio que nem sequer sabia que existia

Chamaram-lhe Atticus por causa do herói de Mataram a Cotovia, de Harper Lee, o advogado Atticus Finch, pai de Scout. O sotaque, no entanto, não é o do Alabama do romance de Lee, mas o das ruas de Nova Iorque, uma ginga que quase sempre esquece o "r" no fim das palavras, mistura muito filtrada das pronúncias italiana e irlandesa. Atticus Lish, filho de Gordon Lish, célebre editor americano, nasceu em Nova Iorque em 1972. No início da sua vida adulta, deixou Harvard, virou costas à educação e aos privilégios do Upper East Side de Manhattan, onde foi criado, e mudou-se para um bairro pobre de Queens, onde viveu entre operários, imigrantes ilegais, gente de muitas origens e línguas, biscateiros, drogados e dealers, a base mais rasteira de uma pirâmide social que até então conhecera apenas no extremo oposto.  

A biografia de Atticus Lish importa para se perceber o universo do seu primeiro — e até agora único — romance. É uma narrativa ao ritmo da respiração humana. A de uma corrida, a do medo, a de uma fuga, a da prisão, a das paisagens abertas ou a que se percebe estar confinada ao gueto ou a um quarto minúsculo num prédio de muitos andares habitado por clandestinos que não têm outro remédio se não revelar as suas respirações mais íntimas. Preparação para a Próxima Vida é sobre isso. E também sobre a guerra, o amor. 

Publicado originalmente em 2014 (e agora editado em Portugal pela Elsinore), valeu ao seu autor o PEN/Faulkner Award para ficção, em 2015, e isso mudou tudo na vida de Lish. Conta a história de um encontro entre uma imigrante chinesa, Zou Lei, e um veterano da Guerra do Iraque, Skinner, duas pessoas à procura de se salvarem do seu passado. “Quando as pessoas me perguntam sobre o significado do título, a minha resposta é que as personagens se estão a preparar para uma nova vida — Skinner procura uma nova vida depois da guerra e Zou Lei depara-se com uma nova vida na América —, mas que também há um significado pessoal. Ao escrever o livro, eu estava a tornar-me um escritor e tenho uma nova existência. Quero tentar escrever para o resto da minha vida.”

A conversa acontece às dez da manhã numa pizzaria modesta em Sunset Park, no Sul de Brooklyn, uma das zonas mais heterogéneas de Nova Iorque. Cheira a café fresco, bagels e lenha do forno que começa a aquecer para o almoço. Atticus vive perto. Mochila às costas, t-shirt preta com quatro canetas presas na gola, calções, ténis para caminhadas, conta como demorou cinco anos a escrever um romance que não sabia se seria capaz de terminar e onde está muito do que absorveu enquanto trabalhou ao balcão de um restaurante de fast-food, no ano e meio em que esteve nos Marines, quando se mudou para a China para dar aulas de inglês e aprender mandarim, ou no período em que viveu como tradutor de livros técnicos. Assemelha-se por vezes a uma reportagem, este romance onde cada personagem pode ser um testemunho, e os ambientes são descritos de forma precisa, com o detalhe que fixa os sentidos sobre a rotina de Zou Lei e da sua família na fronteira da China com o Afeganistão, antes de fugir para a América, ou a de Skinner, ferido de guerra, com o trauma de três missões no Iraque, 36 meses de combate que cumpriu como um bom profissional, mas sem se entregar de alma à vida militar. “Em Queens eram livres para mudarem a história”, ouve-se Zou Lei em pensamento, na voz íntima — ainda que na terceira pessoa — que Atticus Lish escolheu.

“Sim, acho que é um livro político”, concorda sobre o resultado final de Preparação para a Próxima Vida“Eu estava zangado com a Guerra do Iraque, furioso com Guantánamo, muito preocupado com a chamada Lei Patriótica [assinada por George W. Bush após o 11 de Setembro e em vigor até Julho de 2015, permitia escutas a todos os cidadãos, americanos ou estrangeiros, quando considerados suspeitos de ligação a actos terroristas, sem que para isso fosse necessária autorização judicial]. Achei que não devíamos fazer aquilo, que não era ser americano, que era assustador. Queria falar do que estava errado."

Correr para escrever

Tudo começou como uma imagem, ou como prefere dizer, “uma semente”. “A minha vida em Queens é uma memória recorrente. Vivi num apartamento muito parecido com aquele em que Skinner vive, na mesma zona”, conta. “Partilhava a casa um tipo que ia muito a Northern Boulevard fumar charros e tentei escrever uma história que começasse com isso. Ele subia o Northern Boulevard e fumava. Continuo a lembrar-me disso. Havia alguma coisa em Queens naquele tempo, em 1993-94…” Faz uma pausa. “Foi o ano da primeira bomba no World Trade Center. Esse meu companheiro trabalhava na Baixa e chegou a casa e dizer 'Hoje destruíram parte do World Trade Center'." 

No livro, as coisas acontecem após o 11 de Setembro, mas antes dele e logo depois Queens era um bairro à margem com pessoas à margem, “com muitos imigrantes”, precisa Lish, “naquela altura sobretudo chineses e da América Central e do Sul”. E mesmo dentro do bairro, outras subdivisões geográficas. "Tive um senhorio grego, havia irlandeses, um indiano e eu. Todos com sotaque de Nova Iorque, todos nova-iorquinos; era um sítio muito cosmopolita. Nenhum era imigrante de primeira geração. Eram americanos e não olhavam para a raça uns dos outros. Essa diversidade era muito interessante.”

Isso está no romance enquanto parte de uma rotina de cidade, nas suas relações complexas, entre as quais as de domínio dentro de uma mesma comunidade. Quando Zou Lei vai trabalhar para um restaurante chinês, é um elemento oprimido. Natural do Norte da China, é dominada pela maioria do Sul que ali trabalha — uma maioria de falantes de cantonês que despreza o mandarim, a língua que Aticcus Lish aprendeu. É mais uma vez a autobiografia a interpor-se na história.“Eu e a minha mulher [de origem coreana] vivíamos em Boston e fomos para a China em 2005. Todos os dias estava exposto à linguagem e ao pensamento chineses, ao modo de ser chinês, a muitos aspectos da cultura chinesa. Quando voltámos, mudámo-nos para Nova Iorque, pouco depois comecei a escrever.”

E começou partindo não apenas da sua experiência pessoal, mas da sua experiência de leitura. “Os escritores que mais admiro são jornalistas. Acho que aprendi a escrever a ler jornalistas, foi assim que me treinei." Diz que é guiado pela urgência “e por muita emoção”. “Vou correr para que as ideias fluam, faço caminhadas pelas ruas de Nova Iorque, e nesses trajectos vejo mais coisas e tenho mais ideias. Escrevo o que vejo se isso me interessa, e há alturas em que tudo me interessa. No regresso escrevo e escrevo, o livro vai ganhando forma e o engraçado é que isso se tornou uma técnica muito pessoal de escrita. Quer as coisas fiquem como as vejo, quer eu as transforme. Percebi isso em Hemingway. Em As Verdes Colinas de África, quando se caminha e se vê o sol a nascer e pouco depois o sol está a mover-se para uma posição diferente… Esse sentido de nudez da mudança é uma experiência maravilhosa para o leitor.”

Como um escravo

As vozes das personagens também nascem dessa observação, da rua. Skinner é um veterano de guerra actual que transporta traumas de guerras milenares, porque a guerra é a guerra seja em que tempo se fizer. “Tentei fazê-lo verosímil e sair do que seria apenas a ideia de um soldado veterano para chegar perto do que é o sentimento de um soldado agora”, refere, antes de falar do que ouve quando escreve enquanto Skinner. “Há uma espécie de voz militar na América, uma maneira de falar que passa por um humor muito seco. É um falar histérico. Muitas pessoas não assimilam isso e continuam a falar como nos seus lugares de origem. Ou seja, há a linguagem militar e há o regresso ao bairro, e muitos regressam ao bairro. Skinner é um desses.” Quanto a Zou Lei… “Foi complicado chegar à voz dela. Quando ela fala inglês, imagino alguém da Rússia a falar [e começa a imitar, cortando nos artigos, errando as concordâncias]. Esse é o ritmo." 

Há portanto dois discursos a sublinhar um encontro que se adivinha marcado pela tragédia num enredo cautelosamente trabalhado, como se a vida de um e outro se limitassem a correr o seu rumo natural. “O fim foi o que me ocorreu primeiro. A linguagem surgiu a partir de uma imagem de tragédia, como a punchline de uma piada má. Foi então que tive uma noção do início. O problema foi como ir de uma coisa à outra. Fui estudar Flaubert. Li Madame Bovary porque havia o desenvolvimento de uma relação trágica. Eu achava que era capaz de escrever uma cena de acção, mas não sabia como escrever sobre uma relação."

O que se segue, na vida do romance depois de terminado, parece menos verosímil do que a acção. O filho de um editor consagrado que não sabe o que fazer com o original; que enviou partes desse livro a vários editores e esperou, esperou. Um respondeu-lhe. Publicou-o e o livro ganhou o PEN/Faulkner. Atticus Lish garante que não sabia que esse prémio existia. “Não sabia nada sobre edição. Eu sei, parece estranho, mas aparentemente sou o último a saber de muitas coisas. Cresci numa espécie de círculo de prata. Tinha ali os livros e nunca pensei como eles surgiam." Ironiza acerca do que pode parecer o regresso a uma origem literária que estava logo no nome: “Quando era criança dizia aos meus pais que preferia chamar-me Jeff. Atticus era muito comprido e muito invulgar nos anos 70.” 

Atticus Lish foge ao padrão do escritor. No discurso, na indumentária, no universo criativo no modo como tenta entender o que faz agora e que apresenta como a descoberta de uma vida. Pousa o café na mesa, abre a mochila que tem no chão e tira de lá, entre outros títulos: a Odisseia, de Homero, The Golden Bough, de James Frazer, Glittering Images, de Camille Paglia… "Tenho de me reciclar. Antes recarregava-me a fazer desporto, mas li Camille Paglia sobre História e sobre arte... O que sempre me influenciou foram as notícias, temas ligados à sobrevivência, a realidade presente, o crime. Como é que nunca tive arte na minha vida? O que há de errado comigo? Resolvi tentar. Há duas semanas subi ao quarto andar da Biblioteca Pública de Brooklyn e mudei a minha vida. Tenho 44 anos. Não sabia quem era. Ser escritor mudou tudo, houve uma espécie de epifania, como olhar para um santo, não sei. Numa entrevista, alguém me disse que eu não me vestia como um escritor. Mas como é que um escritor se veste. Como é que se sabe o que se faz? O que é ser um escritor?”.

Diz isto como quem descreve uma busca de si próprio. “Comecei a olhar para escritores, para santos, porque este parece-se com um trabalho religioso. É-se diferente, mas que profissão é esta? Quero entender e acho que o único modo para tentar perceber é olhar para a arte. Li John Milton. Mudei o que leio e isso mudou a minha vida, vai-me dizendo quem sou numa rotina feita de crises emocionais. Acontece a cada quatro dias, quando releio o que faço. Até identificar o que não está bem, entro em crise. Sei que tenho de voltar atrás e escrever algo novo, mesmo se for mau. Na procura da perfeição é preciso às vezes aliviar a perseguição dessa perfeição para avançar. Estou ali como um escravo e tento encontrar a minha paz nisso.”

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