Sven Mary, porque defende um terrorista?

Discute-se na Europa se terroristas e genocidas devem ser tratados pela justiça como os outros criminosos. Ou se devem ser remetidos à condição de párias, por recusarem regras básicas do Estado de direito. “Deixou-se chegar as coisas longe de mais", diz a procuradora que investigou o caso das FP-25.

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Sven Mary, advogado belga, ofereceu-se em Janeiro para defender Salah Abdeslam DIRK WAEM/AFP

A sua carteira de clientes incluía alguns dos nomes mais odiados de sempre. Defendeu o criminoso de guerra nazi Klaus Barbie, o genocida sérvio Slobodan Milosevic e o terrorista venezuelano Carlos, o Chacal. Quando lhe chamavam advogado do diabo, o francês Jacques Vergès respondia que era sua obrigação profissional defender qualquer pessoa que fosse acusada de um crime, especialmente aqueles sob os quais impendiam as acusações mais graves – ainda que não se identificasse com os seus actos. “O mal absoluto não existe”, afirmou à revista alemã Der Spiegel em 2008, cinco anos antes de morrer. “Os meus clientes são seres humanos. Têm dois olhos, duas mãos, um género – feminino ou masculino – e emoções. É isso que os torna tão sinistros”.

Os recentes atentados em solo europeu trouxeram para a ribalta outro advogado. Muito antes de Salah Abdeslam ter sido detido por fortes suspeitas de envolvimento nos ataques de Paris, já Sven Mary se tinha oferecido, em Janeiro passado, para representar o terrorista mais procurado da Bélgica. “O que me motiva é o combate contra a arbitrariedade e o abuso de poder. Algo que recrudesceu na França e na Bélgica depois dos ataques”, explicou ao diário belga Le Soir. Tivesse Abdeslam negado o seu envolvimento nos actos terroristas, o advogado negar-se-ia a defendê-lo.

O discurso de Sven Mary, que não é virgem nisto de representar jhiadistas radicais perante a justiça, aproxima-se do das organizações de defesa dos direitos humanos, que temem que a escalada de violência desencadeie como resposta dos Estados ditos civilizados uma proliferação de leis de carácter securitário susceptível de pôr em causa direitos básicos de cidadania - não só dos suspeitos ou autores confessos de terrorismo como de todos os cidadãos. Temem, sobretudo, que comece a mudar o sentido da resposta dada à pergunta que muitos hoje colocam Europa fora: devem terroristas e genocidas ser tratados pela justiça da mesma forma que os restantes criminosos?

Não devem, diz Günther Jakobs de há pelo menos 30 anos a esta parte. Quando alguém comete um acto demasiado monstruoso para ser sequer compreendido não merece sequer ser olhado como pessoa. Tem, isso sim, de ser visto como inimigo da sociedade cujos fundamentos tentou destruir, defende este eminente professor de direito alemão. Aos párias, a justiça não deve conceder os mesmos direitos fundamentais e garantias que às restantes pessoas.

Baptizada como "direito penal do inimigo", quando esta doutrina surgiu, em meados dos anos 80, era uma ideia entre muitas. O antigo ministro da Administração Interna Rui Pereira, que chegou a assistir a uma conferência de Jakobs em Berlim, conta como os atentados de 11 de Setembro de 2001 a colocaram na ordem do dia. Desde aí, explica, “tornou-se impossível ler um estudo na Europa continental sobre terrorismo que não a mencione. É uma ideia marcante que tem levado a grandes discussões”.

Acusado de caucionar, do ponto de vista ideológico, violações dos direitos humanos como as que têm sucedido em Guantánamo, o catedrático alemão hoje já reformado não tem hesitado em criticar o que se passa na prisão norte-americana. Mas a prática da tortura pelo Estado não lhe merece uma resposta taxativa. Dá como exemplo o caso real do polícia condenado por ter torturado o raptor da filha de um banqueiro alemão como única forma de encontrar o seu paradeiro. “Perante uma ameaça sem precedentes  – e de um momento para o outro podemos ter um ataque terrorista em Portugal – é preciso garantir o máximo de eficácia no combate ao fenómeno do terrorismo. O que passa por abrirmos algumas excepções para tratar o que é excepcional, sem perder a noção dos limites. A tortura só poderá ser legitimada ao abrigo do direito de necessidade: tem que se estar perante uma ameaça iminente de um mal superior e isso tem de ser certo e seguro. Só aí se pode admitir que o Estado recorra a meios como este para obter uma informação relevante para evitar um mal maior”, pondera o presidente da Associação de Advogados Penalistas, Paulo Sá e Cunha. “É muito discutível se é admissível um Estado de direito democrático fazê-lo”.

O advogado esteve em Janeiro num encontro sobre o direito penal do inimigo em Bolonha, e o panorama que traça não é a preto e branco. Ao mesmo tempo que reitera a necessidade de o Estado assegurar princípios aceites universalmente, como o de levar todos os criminosos a julgamento, faz notar que a penalização de certas práticas até há poucos anos isentas de censura penal, como a tentativa de viajar para determinado país para ali receber formação terrorista, já configura uma doutrina idêntica à de Jakobs. “Nós, penalistas, temos de defender intransigentemente os arguidos. Mas não podemos enfiar a cabeça na areia. Temos de ter a razoabilidade para perceber que há novas ameaças de uma dimensão e perigosidade diferentes e que temos de as encarar do ponto de vista do direito penal com alguma abertura”, observa. “Se ficamos agarrados aos princípios do liberalismo oitocentista, se calhar não vamos conseguir combater eficazmente esta ameaça. Os bens jurídicos essenciais à vida em sociedade estão a ser ameaçados de forma quase intolerável e num grau nunca antes visto por este tipo de terrorismo”.

Na luta contra o terrorismo, França vive numa espécie de suspensão criada pelo recurso a medidas excepcionais previstas na lei – desde Novembro que vigora o estado de emergência que permite ao ministro do Interior manter em prisão domiciliária qualquer pessoa cuja actividade seja considerada perigosa para a segurança e ordem públicas e ordenar buscas à residência de suspeitos de dia ou de noite, sem passar pela autorização de um juiz. Alguns autores consideram que se estará a cair na armadilha de julgar que só se pode defender a liberdade contra este tipo de ataques usando leis e tribunais especiais.

“No dia em que o Estado se guiar pelo horror que certas coisas causam ou por emoções, e em que, por outro lado, deixar de seguir, nas suas reacções punitivas, a racionalidade e o equilíbrio perde a sua legitimidade e, sem dúvida, perde o seu cunho de Estado de direito. E se há conquista que não podemos destruir - sob pena, aliás, de com isso cedermos a parte dos objectivos de alguns terroristas - é o Estado de Direito e, também, o primado dos direitos humanos”, observa o penalista Rui Patrício, para quem, a haver desequilíbrio entre liberdade e segurança, que seja a favor da liberdade.

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Reforço policial em Bruxelas após os atentados de 22 de Março REUTERS/Charles Platiau

Essa é também a posição do docente Manuel Guedes Valente, que escreveu um livro sobre o direito penal do inimigo: “O caminho de belicizar o direito penal apenas nos traz o espectro do medo e da insegurança e nunca nos garante uma segurança real e efectiva. É uma utopia pensar que o direito penal do inimigo nos produz um espaço e tempo de segurança. Produz exclusão, produz alienação social e política, produz um espaço e um tempo de pessoas e não-pessoas, de amigo e inimigos”.

Estabelecer regimes de estado de sítio ou de emergência com pressupostos demasiado latos ou com duração prolongada pode pôr em causa os direitos dos cidadãos, considera Rui Patrício. Ocultar aos arguidos a possibilidade de saber de que são exactamente suspeitos, de comunicar livremente com o seu advogado ou de se remeterem ao silêncio, por exemplo, é “destruir o pilar essencial do Estado de direito” que constitui a sua defesa. Rui Patrício fala mesmo numa “forma perversa de terrorismo de Estado”: “Esses simulacros carnavalescos [de justiça] podem ser muito populares, mas a prazo pagam-se caros, à custa de todos nós, incluindo quem aplaudiu”. Entre nós, “pelo menos ao nível da lei, pode afirmar-se que um suspeito de terrorismo é como outro suspeito qualquer”, esclarece.

Esta é, de resto, também a posição da comissão de direitos humanos da Ordem dos Advogados, para a qual num Estado de direito democrático não podem existir distinções entre os destinatários das leis, “punindo homens em vez de condutas e construindo guerras em vez de justiça”, porque isso será “o mais curto caminho para o totalitarismo”. A comissão rejeita um sistema penal que constitua “pouco mais do que uma guerra ‘controlada’ em resposta a ameaças de guerras que não somos capazes de prevenir ou responder com eficácia”.

Fundador, com Rui Pereira, do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo, José Manuel Anes é igualmente dos que consideram ser “evitar a todo o custo o extremismo de direita que surge sempre nestes momentos”, nomeadamente propondo agravamento de penas até à prisão perpétua. “Qual é a eficácia de uma pena do direito penal tradicional relativamente a pessoas que têm propósitos suicidas? É-lhes indiferente se incorrem em dez anos de prisão ou em prisão perpétua, ou mesmo em pena de morte”, lembra Paulo Sá e Cunha.

O fácil acesso de muitas organizações criminosas “poderosíssimas e violentas”, como as mafias e tríades, ao próprio aparelho de Estado leva o ex-ministro a dar razão a Jakobs pelo menos num ponto: há que lançar mão de medidas especialmente eficazes, como as acções encobertas, o estatuto do arrependido ou a intercepção de comunicações para combater este tipo de fenómenos. Ou ainda do estado de emergência, que pode suspender o direito de manifestação e decretar o recolher obrigatório. “Mas não pode ser suspenso o direito à integridade física, à identidade pessoal, aos direitos de defesa no processo penal”, sublinha Rui Pereira. “Autorizar a tortura, que atenta contra a dignidade do ser humano, seria um retrocesso civilizacional que nos levaria à Idade Média e à Inquisição. E há que garantir o direito de defesa, por mais horríveis que sejam os crimes”.

No caso português, os advogados oficiosos não podem recusar patrocinar um criminoso confesso, invocando a repulsa que lhes suscita o crime praticado. Vice-presidente do conselho de deontologia dos advogados de Lisboa, Teresa Alves de Azevedo explica porquê: “Está no ADN do advogado considerar que toda a gente tem direito a defesa – o que não significa que peça a libertação do suspeito, mas sim que se assegure que é feita justiça. O advogado não pode fazer parte do linchamento público, ele é a última barreira antes da barbárie ”. Estivesse Salah Abdeslam a braços com a justiça portuguesa, e sem dinheiro para pagar a alguém que o patrocinasse, e ao advogado que lhe fosse nomeado não serviria de muito invocar a objecção de consciência: “Só isso não é motivo de escusa”, esclarece a dirigente da Ordem dos Advogados.

Afinal, trata-se de alguém que se inscreveu voluntariamente para defender quem lhe aparecesse. Já se ao advogado nomeado para defender o terrorista tivesse morrido um familiar morto nos ataques de Paris, e poderia invocar esse facto como motivo de escusa válido para não ter de aceitar o caso. Paulo Sá e Cunha recorda como foi difícil arranjar quem representasse Carlos Silvino no processo Casa Pia: “A certa altura o então bastonário dos advogados, José Miguel Júdice, tomou uma posição: se não houvesse mais ninguém seria ele a defendê-lo, em homenagem a uma responsabilidade institucional que tinha. Era um patrocínio muito impopular, mas um dever institucional. A verdadeira objecção de consciência só se pode pôr em casos excepcionais. Se toda a gente se recusasse a defender homicidas nunca se poderia julgar ninguém”.

A carreira da procuradora Cândida Almeida ficará para sempre indissoluvelmente ligada aos dois processos das FP-25, cuja investigação dirigiu nos anos 80. Eram mais de cem os arguidos, e nem computadores tinha na altura. Seis deles beneficiaram de isenção de pena, por terem ajudado a justiça, relembra. Reconhecendo que são muito diferentes os terroristas dos dias de hoje, a magistrada pensa que, para além da prevenção e da troca de informações entre polícias, uma medida a ponderar seria a criação de um tribunal internacional dedicado exclusivamente a este tipo de crimes - à semelhança do Tribunal Penal Internacional, que esta semana condenou o antigo líder sérvio bósnio Radovan Karadzic, hoje septuagenário, a 40 anos de prisão por genocídio praticado nos anos 90. “Teria de ser um tribunal com regras de processo penal um pouco diferentes do habitual, por forma a que o arguido não pudesse destruir provas nem ameaçar os jurados. E teria de ter polícias e magistrados especializados”. Cândida Almeida acha que mesmo polícias como a Europol ou a Interpol “parecem só estar preparadas para a criminalidade comum e para o terrorismo clássico”, razão pela qual é preciso apostar na formação de especialistas num fenómeno que se tornou transnacional e de matizes ainda muito incompreendidos.

“Deixou-se chegar as coisas longe de mais. Os países não podem exagerar nas medidas securitárias, mas também não se podem fragilizar em nome das liberdades. É difícil, mas o ser humano tem capacidade para encontrar esse equilíbrio. Afinal, até já foi à Lua”, conclui Cândida Almeida.

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