O Brasil debate: o que há de errado nesta fotografia?

A fotografia de um casal branco com um empregada negra a caminho dos protestos de domingo contra o governo divide as opiniões no Brasil. Resquícios da escravatura ou o racismo está nos olhos de quem vê?

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As fotografias do casal Pracownik a caminho dos protestos DR

No dia em que mais de um milhão de brasileiros saíram às ruas para protestar contra o governo de Dilma Rousseff e o seu partido de matriz proletária, muitos foram em família. Mas nenhuma família deu tanto que falar quanto Claudio Pracownik e Carolina Maia Pracownik. Nos últimos dois dias, a fotografia do casal foi partilhada e comentada milhares de vezes nas redes sociais brasileiras. Um jornalista do Correio Braziliense, João Valadares, fotografou os Pracownik numa rua em Ipanema, no Rio de Janeiro, no domingo, a caminho dos protestos. O casal, vestido com a camisola verde e amarela da selecção brasileira – a vestimenta da maioria dos manifestantes, que, entre outras coisas, reivindicaram “um outro Brasil” – levava o seu pequeno caniche pela trela e as suas duas filhas bebés num carrinho, um pouco atrás, empurrado pela “babá” negra de uniforme branco.

Muitos compararam essa imagem com a iconografia produzida por um pintor francês oitocentista, Jean-Baptiste Debret, sobre a sociedade esclavagista brasileira: o patrão branco sendo transportado numa liteira por negros, um funcionário do governo saindo de casa para um passeio com a família, em fila, com o séquito de escravos – incluindo amas-secas, as percursoras das actuais “babás” – na rectaguarda.

“A fotografia é bastante contundente no sentido em que evoca uma imagem muito comum na história do Brasil: a ama de leite, ou ama-seca, negra conduzindo ou segurando crianças brancas”, diz ao PÚBLICO Maria Helena Machado, professora do departamento de História da Universidade de São Paulo, especialista em escravatura e movimentos sociais na época da abolição.

Muitos brasileiros admitiram não ver nada de errado com a imagem: era apenas um casal com consciência política, a exercer a sua cidadania numa altura de insatisfação generalizada com a classe governante e com sucessivos escândalos de corrupção, e que está acompanhado de uma mulher com um trabalho remunerado e “digno como outro qualquer” quando tantos milhões de brasileiros estão desempregados.

A imagem tornou-se um símbolo dos protestos de domingo, criticada por quem não foi, sobretudo pela esquerda, que viu nela uma síntese das contradições de quem foi para as ruas: a elite privilegiada do país, não a população mais afectada pela crise económica. Segundo uma sondagem feita pelo Instituto Datafolha na manifestação de São Paulo, 77% dos participantes têm um curso superior e metade ganham entre 5 e 20 salários mínimos.

Claudio Pracownik, o patriarca da família fotografada, usou o seu Facebook para se defender. “A babá da foto só trabalha aos finais de semana e recebe a mais por isto. Na manifestação ela está usando a sua roupa de trabalho e com dignidade ganhando o seu dinheiro”, escreveu o banqueiro, que é director financeiro do clube de futebol do Flamengo. “Sinto-me feliz em gerar empregos”, continua Pracownik. “Trata-se de uma óptima funcionária de quem, a propósito, gostamos muito. Ela é, no entanto, livre para pedir demissão se achar que prefere outra ocupação ou empregador.” Pracownik termina descrevendo a discussão em torno da foto como um “factoide diversionista” da “intolerável situação” em que o país se encontra.

A fotografia não é diferente do que se vê quase quotidianamente em bairros abastados do Rio ou de São Paulo, onde é comum babás vestidas de branco passearem com crianças brancas. Alguns clubes de elite em São Paulo proíbem babás de entrar sem ser de uniforme branco. No ano passado, a sócia de um desses clubes decidiu desafiar essa prática por considerá-la discriminatória, mas o Ministério Público de São Paulo acabou por arquivar o caso (um promotor que teve voto na matéria era sócio de um dos clubes investigados).

“A representação da ama negra ou mestiça vestida de branco é uma forma de marcar uma diferença. É a forma de distinguir que essa mulher que acompanha o casal, ou a mãe, não é igual a eles”, assinala Maria Helena Machado. O facto de Pracownik tratar bem a sua empregada e pagar-lhe um salário e obrigações sociais não o iliba da história: como colecções brasileiras de fotografia do século XIX atestam, muitos patrões vestiam ricamente as suas amas, adornando-as até com as jóias da família porque era um sinal de prestígio. E “muitas senhoras faziam discursos de como tratavam bem as amas”, nota Maria Helena Machado. O que está em causa na fotografia de domingo é, segundo ela, a reprodução de um “tipo de representação hierárquica” que remonta à escravatura e que “já devia ter sido superada”, manifestada na roupa diferenciada da empregada negra e na sua posição subordinada, seguindo atrás do casal branco.

João Valadares, o repórter que tirou a fotografia – e que não é fotografo – diz ao PÚBLICO que ela “cumpriu o objectivo”. “Um país inteiro está a debater o que é que há nessa foto, que simbolismo é esse que ela carrega.” João Valadares não estava sequer a trabalhar quando fez a fotografia. Publicou-a no seu Instagram, com mais duas variações da mesma cena, e no Facebook, apenas com a legenda “13 de Março de 2016, Ipanema”. O resto está à vista. “Isso só teve uma proporção muito grande porque a foto diz muito sobre o nosso país – sobre o nosso abismo, sobre a condição das pessoas mais pobres, sobre os negros. E é uma realidade que está à nossa frente todos os dias. É um símbolo que não é de agora. Há uma dívida gigantesca para com essa parcela enorme da população.”

Há um discurso comum entre os brasileiros insatisfeitos com 13 anos de governos do PT (Partido dos Trabalhadores) de que os programas e avanços sociais introduzidos a partir da presidência de Lula da Silva para as classes mais desfavorecidas e frequentemente negras – Bolsa Família, quotas raciais para admissão em universidades e instituições públicas, etc. – criaram uma população dependente do Estado e parasitária. “Muitas pessoas deixaram de trabalhar porque passaram a ganhar Bolsa Família”, diz Maria Villagra, secretária, 63 anos.

Profissões como empregada doméstica e babá, que antes eram informais, passaram a estar regulamentadas nos governos de Lula e Dilma Rousseff, incluindo pagamento de horas extraordinárias, subsídio de férias, segurança social, etc. A ascensão social e económica de sectores da sociedade que tradicionalmente estavam confinados à pobreza e a trabalhos de servilismo tem incomodado as elites, como o mais recente cinema brasileiro tratou de mostrar em filmes como O Som Ao Redor, de Kléber Mendonça, e Que Horas Ela Volta, de Anna Muylaert. Muitos brasileiros confessaram, candidamente, no seu Facebook, não ver o que há de errado na fotografia tirada por João Valadares no domingo. O Brasil tem dificuldades em fazer contas com o seu passado esclavagista, daí que algumas das suas manifestações mais arcaicas persistam ainda hoje.

“É uma questão que a sociedade brasileira ainda tem: o mito de que houve uma mestiçagem harmónica, de que a escravatura foi doce, de que nós nos conciliamos, de que a abolição foi feita sem tumulto”, conclui Maria Helena Machado.

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