Catorze andares para estacionamento robotizado e hotel na encosta da Glória

Câmara de Lisboa está a apreciar projecto que implica a demolição quase total da Vila Martel, onde trabalharam alguns dos maiores vultos da pintura portuguesa. Oito dos 14 pisos a erguer ficarão enterrados.

Foto
Na Vila Martel, perto do Príncipe Real, trabalharam alguns dos maiores pintores portugueses MIGUEL MANSO

Columbano viveu lá 20 anos e foi lá que pintou, em 1889, o célebre retrato de Antero de Quental que está no Museu do Chiado. José Malhoa, Carlos Reis, Eduardo Viana, Jorge Colaço, José Campas e outros grandes pintores tiveram ali os seus ateliers no final do século XIX, princípio do século XX. O escultor Francisco Franco produziu lá muitas das suas obras, entre as quais o Cristo-Rei de Almada. Ainda há cerca de um ano era lá que o pintor Nikias Skapinakis trabalhava habitualmente.

Já lá não se ouvem os passos arrastados do “homem já cansado, de grossos sapatões, apegado a uma bengala que parecia um bordão de pedinte”, descrito por Raul Brandão em 1926. O homem, conta o escritor, “parecia um cavador” e foi bater à porta de Columbano. “Disseram-me que queria fazer o meu retrato e aqui estou.” Era Antero de Quental, dois anos antes de se suicidar.

Agora, o local continua a ser um deslumbramento, uma revelação, um segredo escondido na encosta da Glória, com a Av. da Liberdade aos pés, a colina de Santana e o jardim do Torel em frente. Já lá não há artistas, nem visitas ilustres, mas ainda lá mora gente. E ainda lá há flores e gatos.

Para se lá chegar entra-se por um discreto portão de ferro, a meio da Rua das Taipas. Logo atrás está um pequeno túnel, por baixo de um prédio de habitação, que dá acesso a uma escadaria íngreme e invulgar. Mais acima, o desenho elegante do caminho desdobra-se em dois, um pela direita e outro pela esquerda, em torno de uma parede redonda caiada de branco. No topo está uma fila de nove casinhas térreas razoavelmente conservadas, todas iguais, uma porta ao meio e uma janela de cada lado, encostadas umas às outras. Parte delas ainda habitadas.

Nos extremos estão mais duas de cada lado, diferentes, com dois pisos, grandes janelas na fachada e na cobertura, algumas ainda com a configuração original. Foi aí que trabalharam durante mais de um século muitos dos grandes pintores portugueses do século XIX e XX.

Dentro de um ou dois anos toda esta história, que se iniciou por volta de 1883 e chegou materialmente até nós, poderá pertencer a um passado  longínquo, dela sobrando apenas uma ténue memória.

Seis pisos mais oito enterrados
Desde Novembro, a Câmara de Lisboa está a analisar um pedido de informação prévia de cuja resposta, favorável ou desfavorável, depende a demolição de quase tudo o que lá está, o desaterro da encosta e a construção, no local, de um edifício de 14 pisos. Oito enterrados, abaixo da cota da Rua das Taipas, e seis que subirão a cerca de 17 metros acima do solo.

Escondido entre a Rua D. Pedro V e a Rua das Taipas, no miolo de um quarteirão que só se vê do céu, o sítio dá pelo nome de Vila Martel e tem na sua origem José Campelo de Martel, um homem rico e culto, que viveu no estrangeiro e se casou com uma francesa. Republicano, embora pertencente à família dos condes de Castelo Branco — ainda hoje proprietária do local —, José de Martel integrou o grupo de fundadores do desaparecido jornal O Século e foi ele quem ali pôs de pé o projecto mecenático das casas e ateliers para pintores e escultores.

Graças à sua importância histórica e patrimonial, a Vila Martel foi inscrita na Carta Municipal do Património e está classificada como Bem de Valor Patrimonial Relevante no Plano de Urbanização da Avenida da Liberdade e Zona Envolvente (PUALZE). De acordo com o regulamento deste plano, trata-se de um “bem com valor arquitectónico e ambiental cuja preservação se pretende assegurar” e onde “qualquer intervenção deve visar a preservação das características arquitectónicas do edifício”.

As únicas intervenções aí permitidas são as “obras de reabilitação e de ampliação, desde que aceites pela estrutura consultiva” camarária criada por aquele regulamento.

O mesmo diploma refere, porém, num outro artigo, sem fazer excepção de qualquer tipo de bens, que é permitida a demolição de edifícios no perímetro do PUALZE em várias situações. Uma delas verifica-se “quando [a demolição] seja necessária para a execução de planos de pormenor (...)”. Outra, quando a câmara “considere que o edifício não cumpre os requisitos mínimos de segurança e salubridade aos fins a que se destina e que a sua conservação é técnica e economicamente inviável”.

Nos termos da memória descritiva que acompanha o pedido de informação prévia entregue à Câmara de Lisboa pela empresa hoteleira Ekmar — mediante procuração passada pelos proprietários do terreno —, o conjunto da Vila Martel será demolido, com excepção dos dois ateliers situados num dos extremos. O edifício a construir no local terá 12 pisos para estacionamento, oito dos quais subterrâneos, com um total de 186 lugares. O 13.º e o 14.º pisos estão destinados à ampliação, com mais 24 quartos, do hotel da cadeia Memmo, também da Ekmar, que está em construção mais acima, a poucas dezenas de metros, no interior do mesmo quintalão encravado que ocupa as traseiras dos prédios das ruas limítrofes.

Estacionamento robotizado
O estacionamento será servido por um sistema robotizado de elevação dos veículos até aos diferentes pisos. O acesso automóvel ao local far-se-á através de uma passagem a abrir no espaço do rés-do-chão do prédio n.º 55 da Rua das Taipas, onde se encontra agora o portão que leva à Vila Martel. Aí serão também instaladas a portaria, as caixas de pagamento do estacionamento e a entrada para os peões.

Estes poderão aceder à Rua D. Pedro V através de um percurso de utilização pública que incluirá elevadores e vários troços de escadas.  A ligação à D. Pedro V será feita pelo exíguo túnel já existente por baixo de um dos prédios dessa rua e que constitui o único local de passagem para os veículos que se dirigem ao hotel em construção.

A ligação entre a cobertura ajardinada do novo edifício e o corpo principal do hotel será feita através de uma galeria envidraçada. A ampliação do hotel inclui também a construção de duas suites no espaço actualmente ocupado por uma antiga cocheira onde está há muito instalada uma loja de antiguidades. Os dois atelieres que não serão demolidos terão um uso “compatível com serviços e restauração”.

A ocupação proposta para o lugar da Vila Martel “permitirá revelar o espaço hoje ‘oculto’ do atelier outrora usado por Columbano” e “contribuir para suprir o défice de estacionamento público do Príncipe Real como do Eixo da Avenida da Liberdade”, lê-se na memória descritiva assinada pelo arquitecto Samuel Ruiz de Carvalho. Por outro lado, argumenta-se no documento, esta solução “permitirá revalorizar e reabilitar uma área hoje profundamente degradada, assim como contaminar a zona envolvente à Rua das Taipas da actividade hoje manifesta no Príncipe Real e na Av. da Liberdade”.

Para justificar a proposta de demolição da quase totalidade da Vila Martel, o promotor apresentou à câmara um parecer do arquitecto José Maria Lobo de Carvallho, no qual este consultor de património sustenta que “o conjunto apresenta sinais de degradação e abandono, falta de condições de salubridade e anomalias construtivas”.

A resposta positiva ou negativa ao pedido de informação prévia submetido à autarquia deverá ser dada brevemente pelo vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, depois de este receber os pareceres solicitados à Estrutura Consultiva Residente, ao Departamento Municipal de Gestão de Mobilidade e Tráfego, ao Turismo de Portugal e à comissão de apreciação composta pelo director municipal de Urbanismo e por dois representantes da Direcção-Geral do Património Cultural. Em princípio, a decisão do vereador terá de ser posteriormente homologada pela maioria dos vereadores que compoem o executivo municipal.

"Esta solução é uma brutalidade"
Para Raquel Henriques da Silva, professora de História de Arte na Universidade Nova de Lisboa e antiga directora do Instituto Português de Museus, só há uma palavra para exprimir o que pensa do futuro previsível da Vila Martel: “Brutalidade.” Sem deixar de reconhecer que há “lugares expectantes” e “decadentes” nos quais é preciso fazer alguma coisa, defende que a solução proposta “é de uma brutalidade que não se justifica”.

À indignação manifestada depois de ser informada pelo PÚBLICO sobre o que está estudado para o local, Raquel Henriques da Silva acrescentou: “Mesmo que o projecto não seja todo mau, devia haver uma certa responsabilidade ética que não vejo os arquitectos terem.” Referindo-se genericamente a intervenções que afectam o património da cidade, salienta que “o mais perturbante é este silêncio ensurdecedor em relação a estas situações e ao facto de a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) ter sido completamente silenciada e transformada num instrumento de aprovação destas soluções brutais”.

A comissão de apreciação criada pela DGPC e pela Câmara de Lisboa em 2007, por iniciativa de Manuel Salgado, para emitir pareceres sobre as intervenções em locais patrimonialmente relevantes, é vista pela historiadora de arte como “uma estrutura interna, sem contraditório”. Na sua análise, “a DGPC despacha na Câmara de Lisboa, o que é uma coisa inqualificável.”

Sobre a Vila Martel, que conheceu há uma dezena de anos, Raquel Henriques da Silva recorda-se antes de mais da “luz deslumbrante” que ali chega e que entra nos ateliers em que Columbano e tantos outros artistas trabalharam. E também se lembra de como foi pela primeira vez à Vila Martel. “Um dia o Nikias Skapinakis ligou-me e disse: 'Venho convidá-la para vir ver neve em Lisboa.' Cheguei lá e estava tudo coberto de branco. Havia três cerejeiras em flor no quintal.”

Hotel vai permanecer encravado
A construção de um edifício em cima da Vila Martel com ligação à Rua das Taipas não resolverá a situação de encravamento relativo do hotel de 40 quartos em construção no mesmo logradouro. 

O estabelecimento, que terá um anexo com mais 24 quartos nos dois últimos andares do futuro edifício da Vila Martel e duas suites num terceiro edifício, beneficiará de um único acesso através de um túnel existente sob um prédio da Rua D. Pedro V com apenas 2,47 metros de largura, 2,50 de altura e 24 de comprimento.

Atendendo à inclinação do terreno e ao facto de o futuro edifício o ocupar de um lado ao outro, continuará a não haver ligação directa para veículos automóveis, nomeadamente de emergência, entre a Rua D. Pedro IV e a Rua das Taipas.

A construção do hotel foi, no entanto, autorizada pela Câmara de Lisboa sem ter em conta que ele iria agravar, devido ao exponencial aumento do número de utilizadores do espaço, a situação de encravamento em que já se encontrava o logradouro e a meia dúzia de pessoas que aí vivem ou trabalham. A viabilização da obra por parte da câmara ocorreu, aliás, antes de a Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) emitir um parecer favorável — apesar de nele reconhecer que o projecto não cumpre a legislação em vigor.

Nos últimos meses, durante a execução da obra, a empresa promotora introduziu nela um conjunto de alterações em relação ao que foi licenciado pela câmara. Destas alterações resultou um aumento da área total de construção de 2318 para 2803 m2, um aumento de 1064 para 1157 m2 na área de implantação, bem como um aumento de 9,86 para 10,61 metros na altura da edificação e a criação de uma zona de estadia pavimentada na cobertura do hotel.

Para legalizar estas alterações foi submetido à câmara um novo projecto em Dezembro passado. O PÚBLICO perguntou há três semanas à Câmara de Lisboa se esse projecto já foi aprovado e se foi previamente pedido um novo parecer à ANPC, mas ainda não obteve resposta. Sem resposta estão também perguntas relacionadas com o facto de a construção do hotel ter sido autorizada pelo município sem que a decisão tenha sido precedida de uma qualquer análise da localização do estabelecimento e das condições de acesso ao mesmo.

No início da apreciação do projecto de alterações apresentado em Dezembro, um técnico camarário propôs a consulta do Departamente de Gestão de Tráfego e Mobilidade (DGMT), mas o seu superior hierárquico despachou deste modo: “Considerando as novas orientação do senhor vereador Manuel Salgado não é de consultar o DGMT.”

Sugerir correcção
Ler 11 comentários