Cameron pode dizer em casa que venceu a sua “batalha pela Inglaterra”

Depois de um dia frenético de negociações, Cameron viu aprovado um novo compromisso que o ajudará a ganhar um referendo sobre o lugar do seu país: dentro ou fora da Europa. Para os seus pares europeus, um fracasso seria um pesadelo.

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David Cameron Dylan Martinez/reuters

Eram 22h30 (hora de Bruxelas) quando o presidente do Conselho Europeu anunciou através do Twitter o acordo final sobre o compromisso britânico, confirmando que as frenéticas negociações que decorreram na tarde de sexta-feira foram suficientes para redigir um texto que acabou capaz de servir a David Cameron para vencer a sua “batalha pela Inglaterra” e acomodar as garantias exigidas pelos seus pares europeus. Na sexta, disse aos jornalistas que o acordo dará ao Reino Unido “um estatuto especial” na União Europeia. Segundo a BBC, esse estatuto permite-lhe accionar o “travão de emergência” para os emigrantes durante um período que pode ir até sete anos não renováveis. O ponto mais complicado, sobre os abonos de família a que têm direito os filhos dos emigrantes que ficaram no país de origem, acabou por encontrar uma fórmula mais ou menos satisfatória: a suspensão será aplicada aos que chegam de novo mas apenas a partir de 2020 para os actuais beneficiários. Cameron queria que o travão de emergência pudesse ser aplicado durante 13 anos, teve de contentar-se com sete, mesmo assim muito mais do que muitos governos desejariam. O primeiro-ministro checo classificou o resultado de “decente”.

O acordo abre agora o caminho para uma outra batalha, porventura bem mais difícil, que o primeiro-ministro britânico terá de travar para ganhar o referendo, que quer convocar o mais depressa possível. Enquanto negociava em Bruxelas, perdeu mais um dos seus apoios fundamentais no Governo, o ministro da Justiça, Michael Gove, que anunciou a sua disposição de fazer campanha pelo "não" à Europa.

Ainda faltava saber os termos do acordo em relação aos outros capítulos igualmente difíceis de negociar, nomeadamente as exigências da França (discretamente apoiada pela Alemanha, Itália, Bélgica, Luxemburgo e Portugal) para garantir que o Reino Unido não pode dispor de um direito de veto sobre as decisões europeias que digam respeito à regulamentação financeira, nem aquelas que a zona euro decidir tomar. Cameron obteve pelo menos a garantia de que as regras entre os países da zona euro e os que estão de fora serão incluídos no Tratado numa próxima revisão, e que essa revisão também libertará o Reino Unido do princípio da  “ever closer union”, inscrito em todos os tratados da União, algo que hoje significa muito pouco mas que lhe permite dizer aos britânicos que a sua soberania ficou a salvo. A França foi um dos países que mais insistiu na preservação deste princípio simbólico, que apenas deixará de se aplicar aos ingleses. Cameron quer garantir que a City, a maior praça financeira do mundo e a maior indústria britânica, não se veja constrangida a aplicar regras europeias que afectam o seu funcionamento. François Hollande queria precisamente o contrário: as regras europeias têm de se aplicar a todos.

Nenhum primeiro-ministro britânico, desde a II Guerra, resistiu ao tom churchiliano em momentos decisivos, como é este para o Reino Unido. David Cameron partiu na quinta-feira para esta cimeira prometendo a sua “Battle for Britain” (batalha pela Grã-Bretanha). A batalha acabou por revelar-se mais difícil de vencer do que as suas expectativas iniciais, confirmando a metáfora irresistível com que a imprensa mediu os sucessivos obstáculos que teve de ultrapassar: primeiro foi a promessa de um “english breakfast” na sexta de manhã, que rapidamente se transformou em “brunch”, depois em “lunch” e finalmente em “dinner” para conseguir o esforço final.

O pesadelo polaco
O Grupo de Visegrado, actualmente presidido pela República Checa, foi o osso mais difícil de roer ao ponto de ter reservado uma sala para as suas reuniões à qual chamou “Sala de Guerra”, um bom indicador do espírito que hoje anima a Europa. O primeiro-ministro checo foi rapidamente substituído pela sua homóloga polaca, Beata Szydlo, muito mais radical. Em Bruxelas, enquanto assistiam a este braço-de-ferro final, muitas das delegações recordaram a célebre cimeira de Junho de 2007, sob presidência alemã, quando o Governo dos gémeos Kaczynski resolveu bloquear as negociações do Tratado de Lisboa. O mesmo partido tomou agora conta do Governo de Varsóvia, com o mesmo programa nacionalista e conservador, e a luta afigurava-se tão dura como naquela altura.

Angela Merkel não se quis envolver directamente, mantendo uma presença discreta enquanto ia enganando a fome com batatas fritas num café próximo do edifício da cimeira. O Presidente Hollande preferiu ir para o hotel, pedindo que o avisassem 45 minutos antes de os trabalhos serem retomados. Donald Tusk foi fazendo o seu trabalho, que acabou por garantir um inesperado e rápido acordo em Bruxelas.  

As consequências dramáticas da saída do Reino Unido não foram ignoradas por ninguém e, talvez, o primeiro-ministro britânico tenha confiado excessivamente nesse trunfo quando chegou a Bruxelas. Esqueceu-se, porventura, de que a Europa nunca viveu antes um momento em que a “nacionalização” das políticas dos governos fosse tão forte e tão evidente. O primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, chegou a baralhar as negociações, quando ameaçou vetar qualquer acordo sobre o Brexit, caso não obtivesse a garantia de que o seu país não seria votado ao isolamento pelos seus pares, com uma nova fronteira na Macedónia, até ao dia 6 de Março, para o qual está marcada mais uma cimeira. Para Atenas, o problema britânico ainda tinha tempo para encontrar uma solução, enquanto a crise dos refugiados é já hoje.

Papel de Portugal
Tal como prometera antes de partir para Bruxelas, António Costa dedicou a sua intervenção inicial ao problema dos direitos sociais dos emigrantes, que partilha com muitos outros países, pedindo garantias adicionais e criticando David Cameron por trazer para a Europa os seus problemas internos. Como o PÚBLICO escreveu na quinta-feira, essas objecções prendiam-se com a “travagem de emergência”, abrindo a porta à redução dos benefícios sociais dos emigrantes europeus, violando abertamente a não discriminação fixada pelos tratados, cuja natureza absolutamente excepcional e provisória não estava devidamente acentuada.

A segunda preocupação portuguesa era o eventual direito de veto de Londres sobre os avanços da legislação financeira europeia, que partilhava com a França, mas também com a Alemanha, a Itália, a Bélgica e o Luxemburgo (o exemplo mais próximo do que é um paraíso fiscal no coração da Europa). O Financial Times escreveu a meio da tarde de sexta que “sete meses de intensa actividade diplomática não cegaram a Cameron para dissipar as dificuldades, quando a França, Bélgica, Polónia e Portugal levaram para a cimeira um vasto conjunto de críticas” ao próprio documento final que Donald Tusk apresentou aos líderes. Com outros a travar as batalhas por ele (a Polónia no caso dos emigrantes e a França na questão da City) o primeiro-ministro português teve uma cimeira descansada.

Voltando ao princípio, o Financial Times escrevia que, quando a chanceler saiu da primeira sessão do Conselho Europeu e os seus conselheiros lhe perguntavam como estavam a decorrer as coisas, ela limitou-se a dizer “Como de costume”. Falta saber o que disse ao jantar. Conseguiu separar a questão fundamental dos refugiados do Brexit e não teve de se esforçar muito para obter aquilo que queria: evitar a todo o custo a saída do Reino Unido da Europa.

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