O absurdo do presente à lupa

Com Osso, Rui Zink termina a tetralogia que dedicou à crise actual. Um livro em forma de diálogo que usa o humor para dissecar a fragilidade do presente. É uma farsa construída com o mínimo de recursos.

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A tetralogia que agora termina com Osso é um projecto literário e político, de um escritor atento ao seu tempo Pedro Cunha/Público

“Não será que tempos desgraçados peçam desesperos engraçados?” A fala de uma das duas personagens do mais recente romance de Rui Zink (n.1961), escolhida para a contracapa, é simbólica face ao que tem sido o trabalho do escritor desde 2008, ano em que começou a publicar uma série dedicada à crise actual: económica, social, política, civilizacional. Depois de O Destino Turístico (2008), A Instalação do Medo (2012), A Metamorfose e outras Fermosas Morfoses (2014), publicou Osso, no final de 2015, de todos, o livro original na forma, um diálogo inspirado na tradição do teatro clássico, que parodia em tom de farsa a actualidade mais imediata. Aqui Zink, como nos livros imediatamente anteriores, arrisca colocar-se perante o presente menos pretérito, limitando os efeitos do filtro do tempo e aplicando ao actual a linguagem que a actualidade usa para falar dela mesma, e rindo da (ou na) sua dramática fragilidade.

Temos duas personagens principais. Um homem detido num aeroporto, acusado de querer fazer explodir uma bomba – o terrorista –, e outro que o interroga – o interrogador. O romance, ou novela, estrutura-se apenas no diálogo que acontece entre os dois ao longo de dias, na intimidade ou estranheza de uma sala. É um livro breve e veloz. Na fala de um e do outro o escritor compõe um cenário de denúncia destes tempos, como já fizera de um modo mais dramático e negro em A Instalação do Medo, mas aí com outros recursos: descrições, várias personagens, um ambiente cénico mais rico e maior interposição de géneros. Aqui está no osso, da forma, la linguagem, dos recursos, ou seja, como se o escritor aplicasse a austeridade social e económica a um modo de narrar. Tempo e literatura ajustam-se a ver como sobrevivem ou vivem.

As vozes de terrorista e interrogador sucedem-se a um ritmo rápido, frases curtas, num tom casual, que privilegia a oralidade e é a partir dela, e só nela, que a acção se vai desenrolando. É no modo como concebe a teia do diálogo que o autor constrói as suas personagens, lhes dá densidade, e acciona a intriga. Cada palavra é medida para que o outro lhe pegue e se revele na seguinte, num ambiente que começa logo por questionar as posições sociais, históricas, políticas de um e do outro. Aqueles dois homens seriam dois inimigos, não fosse a “sinceridade” desarmante do terrorista que sugere, por exemplo, às autoridades que ponham a circular nos aviões um formulário onde se pergunte aos terroristas a bordo se têm intenção de praticar terrorismo. Estamos no absurdo kafkiano que Zink explora à sua maneira, através de um ágil jogo de palavras, expondo fragilidades humanas e abdicando de exercícios líricos ou morais.

Dois homens conversam – dois inimigos à partida interpelam-se -- e o que sai dali é o essencial para um confronto entre o que se esperava fossem duas visões antagónicas do mundo. Só que o mundo – e o mundo tal como Zink aqui o apresenta – não é a soma de dois contrários. É o terrorista quem diz a um homem que se vai questionado cada vez mais sore o que é o lado certo. O lado certo é o oposto ao do terror. Mas… “Dá vontade de pensar, não? Em quem é o nosso verdadeiro inimigo. O mundo está assim, só lhe digo. De manhã trabalha tudo em fábricas de armamento, à tarde vai tudo a manifestações pela paz no mundo. Admita, somos faces opostas, talvez, mas faces da mesma moeda.”

Zink não é o primeiro a colocar dois inimigos à partida a experimentarem uma aproximação em resultado do que é a complexidade humana. Mas é original na forma como o consegue. Gerindo o mínimo de palavras, recorrendo a um conjunto de referências que são universais, outras muito familiares a um leitor português, tornando aquelas duas personagens verosímeis mesmo – ou também – no seu aparente absurdo, usando uma linguagem sem falsas pretensões, preferindo o humor ao sarcasmo, desmontando clichés mesmo quando os usa para os revelar na sua trivialidade ou monotonia, utilizando o efeito lupa para exibir deformações assumidas pela norma.

A tetralogia que agora termina com Osso é um projecto literário e político, de um escritor atento ao seu tempo. Uma das perguntas que ficam depois de ler sobretudo A Instalação do medo e este último – os dois livros mais inovadores e arriscados – é a de saber como resistirão e irão conseguir falar no futuro deste presente onde tão intencionalmente se situam.

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