As origens da guerra: o caso de um massacre com 10.000 anos e 27 mortos

Arqueólogos desenterraram dezenas de esqueletos no Quénia que documentam um conflito entre caçadores-recolectores nómadas, mostrando que a guerra não é exclusiva das populações humanas sedentárias.

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Lesões no crânio de um dos esqueletos encontrados em Nataruk Marta Mirazón Lahr
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Investigadores Justus Edung e Marta Mirazón Lahr a escavar um esqueleto de uma mulher Robert Foley
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Esqueleto de uma mulher com vários traumatismos na região do tórax Marta Mirazón Lahr
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Ossos das mãos de um esqueleto de mulher, a posição sugere que os pulsos estavam amarrados Marta Mirazón Lahr
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Crânio encontrado nos sedimentos de um homem que mostra lesões que poderão ter sido feitas com mocas Marta Mirazón Lahr
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Investigadores Frances Rivera e Denis Misiko Mukhongo escavam esqueleto Marta Mirazón Lahr
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Esqueleto de um homem em Nataruk Marta Mirazón Lahr
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Arqueólogos escavam um esqueleto de uma mulher Marta Mirazón Lahr
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Esqueleto da jovem mulher que estava grávida quando morreu Marta Mirazón Lahr
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Desenho do esqueleto da jovem mulher que estava grávida quando morreu Marta Mirazón Lahr
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A investigadora Marta Mirazón Lahr a escavar o esqueleto da jovem mulher que estava grávida quando morreu Aurelien Mounier
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Vestígios arqueológicos obtidos na escavação de Nataruk Instituto da Bacia do Turkana
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Investigadores Aurelien Mounier (à esquerda) e Hema Achyuthan a registarem a estratigrafia do local Marta Mirazón Lahr

Os sinais de violência nos esqueletos são inequívocos: “KNM-WT 71253, homem, cabeça virada para sul-sudoeste, cara para baixo; atingido na parte da frente da cabeça com fractura no osso frontal [no crânio], e por uma arma afiada e pontiaguda na parte de baixo do pescoço.” Outro caso: “KNM-WT 71259, mulher, cabeça virada para sul, cara para baixo, queixo no tórax; esta mulher recebeu um ou mais golpes bruscos no seu tórax e nos joelhos, que estão fracturados; o pé esquerdo está dobrado para lá do natural, sugerindo que também foi partido; as suas mãos poderão ter sido amarradas.”

Estas são apenas duas das várias descrições que se encontram no artigo publicado nesta quinta-feira na revista Nature que documenta um massacre ocorrido há cerca de 10.000 anos no Noroeste do Quénia, no sítio arqueológico Nataruk. O resultado foram 27 mortos. Os arqueólogos e autores do artigo científico que desenterraram estes vestígios defendem que estamos perante o testemunho raro de um conflito armado entre caçadores-recolectores, o que nos dá informações sobre as condições necessárias para os humanos entrarem em guerra.

“O que vemos em Nataruk são os vestígios de um ataque planeado e premeditado”, diz ao PÚBLICO Marta Mirazón Lahr, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, que liderou o estudo com mais de 20 investigadores. “As pessoas que atacaram a comunidade de Nataruk transportavam armas que normalmente não são transportadas por pessoas que vão pescar e caçar, e as lesões [nos esqueletos] mostram que o ataque combinou armamento usado à distância (flechas) e de proximidade (mocas e facas de pedra), sugerindo que houve premeditação e planeamento.”

Mundo exuberante

O Nataruk é um sítio arqueológico descoberto em 2009 que fica a cerca de 30 quilómetros da zona sul do lago Turkana – uma massa de água no Leste de África, que se estende ao longo de 290 quilómetros, desde o Noroeste do Quénia até ao Sul da Etiópia, e 30 quilómetros de largura mínima. Esta região é rica em vestígios arqueológicos que têm ajudado a compreender a evolução humana.

Em 2012, foram descobertas as primeiras ossadas em Nataruk, descritas agora no artigo. Dos 27 esqueletos, 21 são de adultos (oito homens, oito mulheres e cinco desconhecidos). Ao todo, os esqueletos de 11 indivíduos, todos adultos, estão bem preservados. A maioria destes esqueletos revela algum tipo de lesão. “Apenas dois esqueletos in situ não mostram nenhuma prova aparente de trauma peri mortem [perto da altura da morte], apesar de nos dois casos a posição das mãos sugerir que os indivíduos poderiam estar de mãos atadas na altura da morte”, segundo o artigo.

A datação das camadas sedimentares que rodeiam e sobrepõem os esqueletos indica que as ossadas têm cerca de 10.000 anos. Nessa altura, o local onde os esqueletos foram encontrados estava submerso, fazia parte de um lagoa que estava perto da margem do lago Turkana.

Na altura, aquela região era mais exuberante. “Durante o Óptimo Climático [período quente da época geológica] do Holoceno, entre há 11.500 e 8000 anos, o lago Turkana era muito maior e a área era exuberante e fértil”, diz Marta Mirazón Lahr, bióloga e especialista em evolução humana. Há vários locais arqueológicos na região que têm ajudado a reconstruir a fauna daquele tempo: elefantes, hipopótamos, rinocerontes, girafas, zebras, javalis-africanos, búfalos, antílopes, gazelas, primatas, cobras, tartarugas, crocodilos, peixes, leões, hienas, mabecos.

“A margem do lago devia ter sido um lugar maravilhoso para se viver – mas também era um lugar perigoso, uma vez que encontrámos noutros sítios arqueológicos vários fragmentos de fósseis humanos com provas de que as pessoas foram comidas por animais carnívoros”, diz a cientista. “As pessoas que viviam ali eram caçadores, recolectores e pescadores. Há marcas de cortes e outros sinais de caça e destruição em fósseis de animais. Apesar de não haver cerâmica em Nataruk, num local perto encontrámos cerâmica que é da mesma altura. [Era] provavelmente usada para guardar água, peixe seco, bagas ou até gordura de hipopótamo.”

Segundo Marta Mirazón Lahr, aquela região serviria como um campo sazonal de recolha de alimentos daquelas sociedades nómadas, por isso é que a descoberta é tão interessante. Este não é o único vestígio arqueológico em África que demonstra ter havido conflitos mortais entre humanos há milhares de anos. Na década de 1960, foi escavado um cemitério mais a norte, na fronteira entre o Sudão e o Egipto, onde se recuperaram 58 esqueletos. Parte deles mostram marcas de violência, incluindo projécteis.

Não se sabe ao certo a idade daqueles esqueletos, mas pensa-se que datem de há 10.000 anos ou que tenham um pouco mais de idade. “Nesse caso, a idade dos esqueletos seria a mesma ou um pouco mais antiga da dos esqueletos em Nataruk – o que seria surpreendente, já que o contexto da violência observado no cemitério é muito diferente”, diz a investigadora. “Era um grande cemitério, que tinha arquitectura, o que sugere que a comunidade vivia numa aldeia algures nas redondezas, por isso não eram caçadores-recolectores nómadas [como em Nataruk]”, explica.

Este e outros aspectos, como o facto de os corpos terem sido enterrados pela própria comunidade, que teve tempo para realizar a cerimónia fúnebre depois do conflito, faz daquele um caso muito mais próximo com o que se passava em sociedades neolíticas, já com o aparecimento da agricultura, onde os conflitos eram relativamente comuns.

Mas a presença humana em Nataruk era de sociedades nómadas. “Isto mostra que a violência entre grupos pode surgir e, de facto, surgiu, independentemente de as populações serem ou não sedentárias. Tudo o que foi necessário foi haver pressões populacionais e um benefício suficientemente grande em roubar outro grupo, que compensasse o custo do combate”, explica Marta Mirazón Lahr.

Os vestígios arqueológicos em Nataruk levam a cientista a acreditar que os 27 mortos resultam de um único ataque perpetrado por um grupo. A disposição dos esqueletos sugere uma única origem estratigráfica e não há mais vestígios de actividade humana na camada de sedimentos. “Não acho que eles tenham sido atirados para a lagoa, mas alguns devem ter caído na água quando foram atingidos (talvez estivessem em pé, a pescar). Outros ficaram provavelmente demasiado feridos para se moverem depois do ataque e acabaram por ser cobertos por água.”

Um caso "extraordinário"

Uma razão para se pensar que este ataque foi feito por outro grupo de humanos deve-se ao facto de terem sido usados projécteis – pequenas lâminas pontiagudas –, uma estratégia típica de conflitos entre grupos. Além disso, dois dos três projécteis encontrados nos esqueletos são de obsidiana, uma rocha formada a partir do magma que arrefece e solidifica rapidamente. Segundo os autores, estas rochas existem longe daquele local, reforçando a ideia de que os atacantes eram de outra região.

Mas o que poderá ter originado o conflito? “Quando as condições são mesmo boas, como em Turkana há 10.000 anos, os grupos prosperam e a população aumenta, até que os recursos se esgotam – ficam sem espaço, sem alimentos. Isto vai levar a uma expansão geográfica, ao contacto com outros grupos, e potencialmente ao conflito”, responde Marta Mirazón Lahr, argumentando que a densidade populacional dos grupos pré-históricos está ligada à guerra. Quando o número de pessoas é pequeno, o custo de defender ou de atacar pode ser demasiado grande, inibindo os conflitos.

Há 10.000 anos, haveria motivos para cobiçar Nataruk: água, alimentos e até mulheres e crianças. “Isto mostra que duas condições associadas à guerra nas sociedades sedentárias – o controlo de território e os recursos – eram provavelmente as mesmas para estes caçadores-recolectores, e que andámos a subestimar o seu papel na vida pré-histórica destas comunidades”, diz a investigadora. “Nataruk é extraordinário por ter preservado o que provavelmente não era um acontecimento fora do comum.”

Recuemos então até a esse momento, quando um grupo de pessoas estava à beira da lagoa de Nataruk, num quotidiano que não é difícil imaginar: pescam, caçam, recolhem frutas, ensinam as crianças, relacionam-se. De repente, tudo termina num acto de violência premeditado, em que pelo menos 27 pessoas não escaparam.

“Os ferimentos sofridos pelas pessoas de Nataruk, homens e mulheres, grávidas ou não, novos e velhos, chocam-nos pela sua inclemência”, refere a investigadora. Um dos casos mais demonstrativo, segundo Marta Mirazón Lahr, é o esqueleto de uma mulher que estava grávida. Os cientistas encontraram na zona abdominal desse esqueleto um feto com seis a nove meses. “Ainda assim, o acontecimento devastador que estes esqueletos nos contam em silêncio não faz da guerra e da violência resultados inevitáveis da nossa natureza. Mostram, no entanto, que sob certas condições, lutar pelo que os outros têm pode ser a única forma de sobreviver.”

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