Alejandro Aravena: um Pritzker para a arquitectura social

O mais importante prémio de arquitectura distingue uma obra que revolucionou a habitação social.

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Director executivo do estúdio Elemental – o gabinete chileno já desenhou mais de 2500 habitações sociais de baixo custo Cristobal Palma
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Parque infantil em Santiago Cristobal Palma
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Centro de Inovação, Anacleto Angelini, 2014, Universidad Católica de Chile Felipe Diaz
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Escola de Matemática, Universidade Católica do Chile (Santiago, Chile) Roland Halbe
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Edifício Novartis, China ELEMENTAL
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Projecto de reconstrução sustentada da cidade chilena de Constitución após o terramoto e tsunami ELEMENTAL
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Urbanização Monterrey (Monterrey, México) Ramiro Ramirez
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Torres Siamesas, Universidad Católica de Chile Cristobal Palma
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St. Edward’s University Dorms (Austin, Texas, EUA) Cristobal Palma
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Fundação Jan Michalski (Montricher, Suiça) +2 Architectes
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Miradouro Las Cruces Pilgrim (Jalisco, México) Iwan Baan
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Urbanização Quinta Monroy (Iquique, Chile) Cristobal Palma

O arquitecto chileno Alejandro Aravena, conhecido pelos seus revolucionários projectos de habitação social, nos quais os residentes são estimulados a aumentar e melhorar as casas por sua própria iniciativa, é o prémio Pritzker de 2016. A escolha foi anunciada esta quarta-feira, dia 13, e Aravena, que é também o curador da edição deste ano da Bienal de Arquitectura de Veneza, receberá o prémio, no valor de cem mil dólares (cerca de 72 mil euros), no próximo dia 4 de Abril, numa cerimónia que decorrerá no edifício das Nações Unidas, em Nova Iorque.

Director executivo do estúdio Elemental, centrado em projectos de interesse público e com impacto social – o gabinete chileno já desenhou mais de 2.500 habitações sociais de baixo custo, além de projectos de espaços públicos, infraestruturas e sistemas de transportes –, Alejandro Aravena foi elogiado por Tom Pritzker, filho do fundador do prémio e actual presidente da fundação, por mostrar "que a arquitectura, no seu melhor, pode melhorar a vida das pessoas”.

É a primeira vez que o Pritzker é entregue a um chileno e a quarta vez que a distinção vai para a América Latina, depois de ter consagrado o mexicano Luis Barragán, em 1980, e os brasileiros Oscar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha, respectivamente em 1988 e 2006.

A escolha de Alejandro Aravena é significativa não apenas por se tratar de um arquitecto relativamente jovem, 48 anos, e que não tem para apresentar um vasto conjunto de obras emblemáticas, como a generalidade dos premiados anteriores, mas também por sugerir que o júri do Pritzker terá reconhecido que o tempo das grandes estrelas mundiais da arquitectura pode estar a dar lugar, nestes anos de crise económica, ao regresso de uma arquitectura mais socialmente empenhada.

Aravena assinou algumas obras de grande dimensão, como o Centro de Inovação e as Torres Siamesas da Universidade Católica de Santiago do Chile, ou os dormitórios da universidade de St. Edwards, em Austin, no Texas, ou ainda o edifício da Novartis, presentemente em construção em Xangai. Mas quando anunciou o vencedor do prémio, Tom Pritzker destacou, significativamente, outras características do trabalho do arquitecto chileno: “Oferece oportunidades aos menos privilegiados, mitiga os efeitos dos desastres naturais [uma referência ao projecto de reconstrução sustentada da cidade chilena de Constitución após o terramoto e o tsunami que a atingiram em 2010], reduz o consumo de energia e cria espaços públicos convidativos."

“Um dos maiores erros que os arquitectos cometem é a tendência para lidarem com problemas que só interessam a outros arquitectos”, disse o próprio Aravena em entrevista ao jornal inglês The Guardian, quando “o maior desafio é lidar com questões importantes exteriores à arquitectura – pobreza, poluição, congestionamento, segregação – e aplicar-lhes os nossos conhecimentos específicos”.

Afirmando que o modo como Alejandro Aravena soube compatibilizar a dimensão artística da arquitectura com os desafios sociais e económicos dos nossos dias contribuiu para “expandir significativamente o papel do arquitecto”, o júri do Pritzker vê exemplarmente representado na sua obra “o renascimento de uma arquitectura mais socialmente comprometida, especialmente no seu compromisso de longo prazo com o combate à crise da habitação e com a luta por um ambiente urbano mais qualificado”.

Presidido por Peter Palumbo, um promotor imobiliário e coleccionador de arte britânico, o júri desta edição incluiu ainda Stephen Breyer, Yung Ho Chang, Kristin Feireiss, Glenn Murcutt, Richard Rogers, Benedetta Tagliabue e Ratan N. Tata. No final da sua declaração, o júri observa que “o papel do arquitecto está hoje a ser desafiado para responder às grandes necessidades sociais e humanitárias” e reconhece que Aravena “respondeu a esse desafio de forma clara, generosa e integral”.

Talento e qualidade

Álvaro Siza, que recebeu o prémio Pritzker em 1992, disse ao PÚBLICO que não conhecia pessoalmente Aravena, mas sabe tratar-se de “um arquitecto com muito talento e qualidade, reconhecido em todo o mundo, e com uma obra diversificada, apesar de ser ainda muito novo”.

Siza acha que “o Pritzker está muito bem atribuído” e vê um significado especial nesta escolha, por distinguir “um trabalho muito interessante no domínio da habitação social, feito em contacto com os futuros utentes, e com uma dimensão de autoconstrução”. Uma espécie de actualização do projecto SAAL? “Tem algumas semelhanças, ainda que num tempo e num contexto muito diferentes”, diz o arquitecto, que considera o prémio ainda mais significativo por vivermos uma situação em que “a preocupação com a habitação social foi abandonada, tanto pelos arquitectos como pelos políticos”. “Aquela aura dos anos 70 já passou, e esse é um dos aspectos da crise que hoje atravessam a arquitectura e as nossas cidades”, acrescenta.

Também Tiago Mota Saraiva, um dos sócios fundadores do ateliermob, em Lisboa, vê a atribuição do Pritzker como a confirmação de uma grande virtude do trabalho de Aravena: “Ele consegue colocar no mainstream, no espaço mediático, um tipo de arquitectura que estava fora de moda desde o ‘efeito Guggenheim de Bilbau’." Mota Saraiva nota que o arquitecto chileno, com a sua obra e acção, “conseguiu reabrir uma discussão que não se fazia desde os anos 90”, num quadro que, desde essa altura e até agora, estava “muito centrado na arquitectura de autor”.

Admitindo que esta alteração de rumo vinha já sendo visível nas últimas edições do Pritzker – nomeadamente com a consagração, em 2014, da arquitectura humanitária do japonês Shigeru Ban –, Mota Saraiva só lamenta que “esse movimento mundial tarde em chegar a Portugal”.

Tiago Mota Saraiva vê na obra de Aravena a valorização da arquitectura “como prática colectiva”, mas sem perda do sentido de exigência e de qualidade e continuando a atribuir ao arquitecto “um papel fundamental”.

O arquitecto e editor André Tavares, um dos comissários gerais da Trienal de Arquitectura de Lisboa 2016, considera igualmente “muito positiva” a atribuição do prémio a Aravena, “um arquitecto que tem uma grande capacidade de se movimentar socialmente entre o seu país, os EUA, onde também vive, e a Europa, onde vai ser comissário da próxima Bienal de Veneza”.

Tavares salienta ainda outro aspecto do trabalho de Aravena: a sua capacidade de associar a preocupação com a arquitectura à atenção ao projecto. “Apesar das suas preocupações sociológicas e relativas à escolha dos materiais, Aravena tem sempre o pensamento no projecto”, algo que considera especialmente relevante para a qualidade da sua arquitectura. “Essa é também uma peça-chave”, e que dá sentido ao debate que a obra do chileno suscita no seio da disciplina. “Ele não fala no vazio, não fica na teoria, usa a sua arquitectura, com o seu sentido plástico e coerência formal, como suporte para esse debate."

Já Tiago Mota Saraiva nota ainda que a atribuição do Pritzker a Aravena “vem lançar uma expectativa acrescida para a sua presença em Veneza. E lembra a ressonância provocadora e quase militar do tema já anunciado pelo comissário – Reporting From the Front – para a próxima bienal italiana. “É um discurso muito bélico: é preciso estar na frente da batalha e não deixar a arquitectura ser emparedada por aqueles que têm dinheiro, ficar restrita a uma prática para as elites, mas abri-la ao território vastíssimo dos milhares de pessoas com quem os arquitectos têm também de trabalhar”, diz.

 

O arquitecto das meias casas

Nascido em 1967 em Santiago do Chile, Aravena formou-se em Arquitectura na Universidade Católica da capital chilena em 1992 e fundou o seu primeiro gabinete dois anos depois. Dirige desde 2001 o atelier Elemental, onde colabora com arquitectos como Gonzalo Arteaga, Juan Cerda, Victor Oddó ou Diego Torres, uma organização que se autodenomina um “do tank”, jogo de palavras com a expressão “think tank” que pretende sublinhar, por contraste, a vontade de fazer, de resolver problemas concretos.

Mas Aravena, professor convidado em universidades de vários países, não é indiferente à discussão teórica da disciplina, para a qual contribuiu mesmo com alguns livros, como Los Hechos de la Arquitectura (1999), El Lugar de la Arquitectura (2002) ou Material de Arquitectura (2003), além de uma monografia sobre o trabalho do atelier Elemental.  

Aravena e o seu gabinete ganharam notoriedade internacional em 2004 com um projecto para a cidade chilena de Iquique que iria revolucionar o conceito de habitação social. O desafio era realojar uma centena de famílias que ocupava ilegalmente meio hectare de terreno no centro da cidade. Como o dinheiro público disponível estava longe de ser o bastante para custear a compra do terreno, num lugar valorizado, e ainda a construção de novas casas, a única solução que parecia restar era a habitual em casos como este: realojar os residentes em zonas suburbanas. Foi aí que Aravena teve uma ideia genial, que resumiu ao PÚBLICO numa entrevista de 2009: “Se o dinheiro não chega para fazer uma casa de 80 m2, talvez chegue para fazer uma de 40 m2, e a nossa reformulação do problema foi considerar 40 m2 como metade de uma casa boa, ficando o restante para ser feito mais tarde, pelos próprios habitantes, quando surgir o dinheiro."

O arquitecto e os seus associados ficaram com a parte que as famílias "dificilmente conseguiriam fazer sozinhas", como a casa de banho, a cozinha ou as escadas, explicou ainda Aravena na mesma entrevista, e acrescentaram a estrutura da segunda metade, onde os residentes iriam poder improvisar. E improvisaram. Ao longo dos anos, os espaços deixados abertos e em bruto foram sendo fechados com o recurso aos mais diversos materiais e técnicas, o que não terá tornado o bairro, conhecido como Quinta Monroy, um exemplo de harmonia estética, mas faz dele um exemplo de liberdade.

Este modelo foi depois de algum modo replicado por Aravena noutro locais, como Constitución ou Monterrey, no México. Mas a consagração internacional do arquitecto também passou pelo conjunto de edifícios que desenhou para a Universidade Católica do Chile em meados da década passada – o Centro de Inovação, as Torres Siamesas e as faculdades de Arquitectura e Matemática –, notáveis pelas soluções inovadoras que foram encontradas para reduzir os gastos energéticos, utilizar a luz natural e responder às especificidades climáticas locais.

Entre muitos outros projectos, alguns deles já referidos, o arquitecto desenhou ainda o Parque Bicentenário da Infância, em Santiago do Chile, uma residência para escritores em Montricher, na Suíça, mas também projectos privados, como a  casa Ocho Quebradas, de 2014, um jogo de volumes em betão armado a condizer com a paisagem rude de uma falésia na costa chilena, na região de Coquimbo.

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