A luta pela supremacia no mundo árabe-islâmico

Nos séculos XIX e XX, eram as guerras intra-europeias que se projectavam no mundo árabe-islâmico e fora dele. Com a Europa em declínio demográfico e de poder, é esta que sofre agora sequelas de conflitos exteriores.

1. Arábia Saudita versus Irão. Está em curso uma grande confrontação pela supremacia do mundo-árabe islâmico. Ocorre sob diversas formas. Por vezes, de uma forma directa.  Mais frequentemente, através de interpostos actores. Segue linhas divisórias religiosas: sunitas versus xiitas. Estas são também, ou sobretudo, linhas de fractura política. Propaga-se, ainda, segundo divisões étnicas: árabes versus iranianos (persas). Tem múltiplos terrenos de confrontação. Na guerra da Síria, o Irão suporta o regime de Bashar al-Assad e a minoria alauita próxima do xiismo; a Arábia Saudita financia os grupos islamistas-jihadistas que se opõem a este, incluindo, de forma indirecta, o Daesh (Estado Islâmico). No Líbano, o Irão apoia política e militarmente o Hezbollah, o principal partido da população xiita libanesa — um aliado também na guerra da Síria; por sua vez, a Arábia Saudita apoia tradicionalmente partidos e movimentos oriundos da população sunita do país. No Iraque, o principal apoio externo da maioria xiita é o vizinho Irão. Paradoxalmente, a chegada dos xiitas poder é resultado da invasão norte-americana de 2003 e do derrube de Saddam Hussein. Este baseava o seu domínio na minoria sunita do país. A Arábia Saudita, que apoiava o regime anterior até à invasão do Kuwait, em 1990, foi o principal financiador externo na sangrenta guerra contra o Irão (1980-1988). Agora apoia diversos partidos sunitas e a rebelião armada de grupos islamistas-jihadistas. No Bahrain, um pequeno Estado insular do golfo Pérsico, a confrontação deu origem a uma intervenção militar saudita. Em 2011, na altura das revoltas da Primavera Árabe, a maioria xiita sublevou-se contra o monarca sunita Hamad Al Khalifa. Este, a pretexto da  segurança nacional e instigação da revolta pelo Irão, pediu apoio militar à Arábia Saudita e outros Estados árabes sunitas do Conselho de Cooperação do Golfo (Omã, Emirados Árabes Unidos, Qatar, Bahrain e Kuwait). No vizinho Iémen, no Sul da Península Arábica, a confrontação dá-se também no terreno militar. A tomada de poder por milícias huthis — uma facção do Islão xiita, conhecida como zaidis (ou zaiditas) —, foi vista como favorecendo a penetração do Irão na região. A Arábia Saudita, secundada pelos restantes países do Conselho de Cooperação do Golfo e outros Estados árabes sunitas, iniciou, em 2015, uma intervenção militar no Iémen, actualmente em curso.

2. Num certo sentido, a confrontação que opõe a Arábia Saudita e o Irão tem raízes tão profundas quanto o próprio Islão. As divisões entre sunitas xiitas datam dos primeiros tempos da era islâmica e da luta fratricida sobre a sucessão do Profeta Maomé, no século VII da era cristã — o termo xiita designa os partidários de Ali nessa sucessão. Frequentemente, as divisões religiosas e disputas teológicas encobrem fracturas étnicas e/ou culturais profundas e lutas de poder bem políticas. Aconteceu isso na história do Cristianismo. A divisão entre o Cristianismo ortodoxo e Cristianismo latino não foi apenas teológica, ou sobre a primazia do bispo de Roma (Papa). Não por acaso, um expandiu-se, sobretudo, nos territórios helénicos da Antiguidade; o outro, implantou-se, essencialmente, nos territórios latinos e germânicos. O Cristianismo ortodoxo e o Cristianismo latino prolongaram, sob outras formas, a fractura cultural e política da Antiguidade, entre a Grécia e Roma.

Na Europa dos séculos XVI e XVII, a Reforma Protestante e a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), foram episódios onde as querelas religiosas da Cristandade ocidental foram instrumentalizadas por lutas políticas e de poder. A maior parte da Europa do Norte — onde o domínio romano na Antiguidade nunca penetrou directamente —, aproveitou para se libertar do domínio do Papa e dos Imperadores Habsburgos católicos. Não foi apenas por divergências religiosas e teológicas que a Inglaterra, a Suécia e a maior parte dos Estados do Norte da Alemanha, se tornaram protestantes. A ideia de uma igreja nacional, separada de ingerências externas, foi atractiva para os monarcas que procuravam consolidar o seu poder.

Um processo religioso-político, com similitudes históricas, ocorreu no mundo islâmico dos séculos XVI e XVII. Nessa altura, o Irão, já islâmico há vários séculos, mas herdeiro da cultura da Pérsia da Antiguidade, transformou-se num Estado xiita. Até aí a sua população era maioritariamente sunita. O processo de conversão ocorreu sob o domínio do Xá Ismail — o fundador da dinastia Safávida —, a partir de inícios do século XVI. Também aí prevaleceu um princípio similar ao da Reforma Protestante na Europa: cujus regio, eius religio, ou seja, os súbditos seguem a religião do governante. De forma mimética, as lutas religiosas encobriram fracturas étnicas e culturais profundas, entre árabes, turcos e persas, e intensas lutas de poder. No século XVI e XVII, o grande poder islâmico sunita, com ambições universais sobre os muçulmanos, era o Império Otomano. Foi contra este que o Xá Ismail transformou o Irão num Estado xiita duodecimal, ou duodecimano, ou seja, que reconhece doze imãs. Hoje é a versão principal do xiismo. A identidade e o orgulho persa não se submetiam a um poder islâmico predominantemente turco. (Herdeira do grande Império Otomano, também a Turquia actual tem as suas próprias ambições de supremacia que aqui não são analisadas. Há ainda outros aspirantes à liderança fora do Médio Oriente, como o Paquistão ou até a Indonésia, que exorbitam desta análise.)

3. Ao contrário do Irão, a Arábia Saudita é um Estado sem tradição histórica enraizada, que só surge tardiamente no mapa político do século XX. Nos séculos anteriores, o seu território e população encontravam-se essencialmente incorporados no Império Otomano. Só o simbolismo de Meca e de Medina lhe davam relevância no contexto do Islão. A população era diminuta e largamente tribal. No século XVIII, a aliança entre a família / tribo dos Saud e o pregador Muhammad ibn Abd al-Wahhab criou o embrião de uma estrutura estadual. Ao longo da segunda metade século XX a situação transformou-se radicalmente. O wahhabismo, uma forma purista e retrógrada de Islão sunita — também designada por salafista —, com origem na Arábia tribal do século XVIII, tornou-se religião de Estado. Até aos anos 1960 / 1970, o wahhabismo era uma corrente relativamente marginal no contexto do Islão. Não tinha qualquer impacto relevante fora da Península Arábica. A partir dessa altura, os enormes recursos financeiros sauditas ligados ao petróleo deram-lhe uma projecção inesperada. Um pouco por todo o mundo — do Afeganistão aos Balcãs —, passou a adquirir uma influência crescente.

Também a partir dessa altura, a Arábia Saudita começou a ter crescentes ambições de liderar o mundo árabe-islâmico. Procurou preencher o vácuo aos olhos dos muçulmanos que se viam como órfãos da liderança universal do califado — desaparecido após o colapso do Império Otomano na I Guerra Mundial. A sua ambição alicerçou-se em alianças de conveniência com poderes estrangeiros “infiéis”, a mais importante das quais com os EUA, datando dos anos 1930 / 1940. O encontro entre Roosevelt e Abdel Aziz Ibn Saud, em inícios de 1945, a bordo de um navio de guerra norte-americano no canal do Suez, é o episódio mais conhecido da sua mitologia fundacional. Basicamente, é uma aliança de fornecimento de petróleo em larga escala, e teoricamente barato, em troco de armamento sofisticado e protecção político-militar. A partir da revolução iraniana de 1979, e da chegada do Ayatollah Khomeini ao poder (que instalou uma teocracia xiita), transformou-se no principal apoio dos EUA na região. Até aí, o Irão do Xá Reza Pahlavi era o maior aliado e cliente de equipamento militar dos norte-americanos.

No Médio Oriente, ninguém melhor do que os sauditas soube explorar o trauma e a debilidade estratégica norte-americana, derivado da sua perda. A humilhação dos reféns da embaixada dos EUA em Teerão (1979-1981) aumentou o ressentimento e feriu o orgulho norte-americano durante décadas. Hoje há sinais de mudança. O acordo sobre o programa nuclear iraniano, obtido em 2015, denota uma nova proximidade, ainda que fria. A guerra da Síria, e, sobretudo, a extrema barbárie do Daesh geraram um novo contexto político, de convergência objectiva de interesses. A reaproximação Irão-EUA é um cenário de pesadelo para os sauditas.

4. A recente execução do clérigo xiita, Nimr al-Nimr, na Arábia Saudita, e o subsequente corte de relações diplomáticas entre os dois países, deve ser analisado à luz deste contexto histórico-político e da luta pela supremacia em curso. As minorias religiosas têm um papel pouco invejável na confrontação. São vistas com extrema desconfiança por ambos os lados. Uma espécie de reservatório de recrutamento, dentro do território nacional, potencialmente ao serviço dos interesses externos. Os xiitas sauditas são apóstatas aos olhos do Islão sunita wahhabita dominante e o rosto mais visível do inimigo interno.  A situação das minorias sunitas no Irão é, em grande parte, simétrica desta. Para intensificar o problema, frequentemente as populações minoritárias estão em zonas geopoliticamente sensíveis. É o caso dos xiitas da Arábia saudita. Em grande parte, situam-se na rica região petrolífera do leste do país, próxima do golfo pérsico e Bahrain. Isso intensifica a percepção de apóstata / inimigo que recai sobre essas populações. Por último, uma nota sobre o impacto desta grande confrontação pela supremacia do mundo-árabe islâmico no Ocidente. Para os EUA, o problema é essencialmente estratégico e de protecção de interesses de potência global no Médio Oriente. A distância geográfica põe o seu território ao abrigo de muitas sequelas dessa luta. No entanto, as contradições das suas alianças, os interesses cruzados da sua clientela e jogo saudita de aliado-inimigo — pelo apoio, mais ou menos dissimulado, a grupos islamistas-jihadistas anti-ocidentais e exportação do salafismo wahhabita —, tornam a gestão da relação estratégica particularmente complexa.

Quanto à Europa, tem uma posição frágil. Pela sua proximidade geográfica, dependência energética e ligações e demográficas, nela se projectam, de forma bastante nítida, algumas das suas piores consequências. Parte substancial das vagas de refugiados que se dirigem a território europeu — e se intensificaram em 2015 — tem origem, de forma directa ou indirecta, em países ou territórios em conflito, onde se luta por esta supremacia. Por outro lado, os europeus não têm, nem os meios políticos, nem militares, dos norte-americanos, para pressionarem a solução de guerras como a da Síria ou do Iémen. A grande ironia histórica é que, na memória europeia recente, dos séculos XIX e XX, eram as guerras intra-europeias que se projectavam no mundo árabe-islâmico e fora dele. Com a Europa em declínio demográfico e de poder, é esta que sofre agora sequelas de conflitos exteriores. Resta saber a dimensão futura das consequências desse confronto, que parece arrastar a Europa para um passado longínquo pré-moderno.

Investigador

 

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