Naturezas-vivas

As peças de Abel Neves recriam o país como um teatro próprio, mas aberto ao mundo.

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Este Oeste Éden (2009), produção da Escola da Noite

Abel Neves (nascido em Montalegre, em 1956, mas a viver em Lisboa desde os anos 70) é um dos principais dramaturgos portugueses em actividade, com mais de 50 peças de teatro escritas nos últimos 30 anos. Os seus textos têm sido feitos um pouco por todo o país, em produções das mais variadas companhias, em especial a Comuna, a Escola da Noite e o Teatro do Montemuro, mas não só. As peças breves do conjunto Além as Estrelas São a Nossa Casa (2004) são montadas frequentemente, de Norte a Sul, em diferentes combinações, e o texto Nunca Estive em Badgad (2006), incluído nesta edição, foi já traduzido e encenado em sete línguas. Com Luísa Costa Gomes, Jaime Rocha, Jorge Silva Melo e Mário de Carvalho, todos maiores de idade em 1974, Abel Neves faz parte de uma geração de autores teatrais forjada entre o desencanto colectivo e a esperança pessoal (ou o inverso) nas mudanças sociais em Portugal.

A colectânea de textos ora editada pela Companhia das Ilhas — com apoio da Sociedade Portuguesa de Autores — na colecção de teatro dirigida pelos dramaturgos Rui Pina Coelho e Carlos Alberto Machado tem oito peças, todas já estreadas: a acima mencionada Nunca Estive em Bagdad (2006), Querido Che (2007), Este Oeste Éden (2009), Clube dos Pessimistas (2010), Flores para Mim (2011), Olhando o Céu Estou em Todos os Séculos (2012), Cruzeiro (2015) e Purgatório (2015). A leitura das peças aumenta a vontade de as ver em cena, mas o leitor terá satisfação em imaginá-las na sua cabeça. A selecção prova que a musa inspiradora de Abel Neves tem sido generosa. O volume contém pérolas que confirmam os seus poderes e a vitalidade da dramaturgia de expressão portuguesa.

Há temas e motivos recorrentes: a casa que não é bem uma casa, em Nunca Estive em Bagdad (um apartamento em mudanças), Flores para Mim (uma sala decorada como quarto de hotel) e Purgatório (uma antiga roullote de circo e de farturas); a mulher grávida de outro, em Este Oeste Éden (do agora cunhado) e em Cruzeiro (do agora sogro); a gaiola, em Querido Che, em Flores para Mim e em Purgatório, onde aparece também uma antiga jaula de circo; há flores oferecidas que são tratadas com descaso, há a ameaça de abandono do lar, há corações só aparentemente desencontrados.

As personagens agem apaixonadamente, usando a ironia para retrucar quando os seus intentos parecem ser frustrados pelos outros. Abel Neves põe na boca delas frases familiares, facilmente reconhecidas do dia-a-dia, aparentemente banais, mas que aqui revelam a potência de agressão e carinho que contêm. Em Nunca Estive em Bagdad, Rogério e Glória, acabados de mudar, lidam com a guerra no Iraque, a ida ao hospital, a fome, o frio, o desejo, tudo ao mesmo tempo:

R.: — (Olhando atentamente o monitor.) Porra, o Carlos Fino! No meio desta merda uma pessoa até tem de se rir. Uma pessoa tem de se rir com esta tragédia. Passou-lhe agora mesmo um míssil por cima da cabeça. Em cheio num palácio, ou lá o que foi. Porra, estás a ouvir as sirenes?
G.: — (Off.) Quê?
R.: — Se estás a ouvir as sirenes!
G.: — (Entrando com o penteado mudado e de novo com o saco de água quente.) Não fazes a sande?
R.: — Não me apetece.
G.: — Aqueceste a água?
R.: — Pediste?
G.: — Costumas aquecer.

Uma opinião, um pedido, um ataque, podem bem ser o contrário do que se diz, e a ironia é usada deliberadamente para levar o outro a agir, a responder às provocações, de preferência sem tempo de pensar. O desejo é que o outro revele o seu carácter e confirme as suas intenções. Neste jogo, o amor aparece como suplente da política, ou, pelo menos, quando tudo o mais parece retórica, uma garantia de soberania individual. As explosões de raiva que redundam em ternura são a moeda de troca entre estes homens quase adultos, e estas mulheres quase maternais.

As recorrências não se devem à exaustão de recursos, mas à busca de padrões cénicos e poéticos para uma certa visão do mundo, que se materializará em palco. As imagens são fortes e originais, mas estranhamente familiares. Na peça mais recente, Purgatório, uma das personagens, António, diz, exactamente antes de um momento de viragem: “Andei a ver pirilampos. Por aqui há muitos. Uma pessoa fala e eles colam-se à língua, parecem uns fios na boca. Não vais conseguir dormir.” Em Cruzeiro, o pai, cego, prova directamente da faca, estendida por um dos filhos, o sangue de um cabrito sacrificado em nome de todos. Nestes dois textos, em especial, as imagens fundem-se sem esforço com as intenções objectivas e os diálogos realistas, dando origem a mundos cénicos onde o lugar da acção, os adereços manuseados e as atitudes das personagens compõem um todo harmonioso, cheio de significados por interpretar.

Purgatório termina com a fusão de dois universos, o real, do teatro, e o imaginário, da ficção que simula o mundo: António “guarda as poucas máscaras nos sacos e deixa-os indo sentar-se à mesa. Ouvem-se, num muito lento crescendo, sons de animada feira popular, com música de antigo realejo, de carrossel, anúncio festivo de tourada, tendas de divertimento, indistintas vozes humanas. À medida que o som vai subindo, vai descendo a luz. Quando a luz está quase em escuro, o som é, indistintamente e só, música de realejo. O som corta e escuro”. É a arte da indicação cénica como expressão lírica e dramática. Os sons desta feira que avança sobre o último reduto de António definem, pelo contraste, o estado de espírito da personagem.

Tomado como um todo, o conjunto destas peças recria o país como um teatro próprio, onde se cruzam homens rurais, mulheres silvestres, bichos urbanos, sempre em busca de um afago, figuras e actos que se revelam familiares ao comum dos portugueses. Mas é um país aberto ao mundo. As personagens de Neves migram entre cenários de filme, casas em ruínas, campos e jardins abandonados, sonhando com outras cidades e outras épocas, da Bagdad em guerra do início do século XXI aos Alpes pré-históricos. Um país também ele imaginário. Talvez a ideia de natureza-morta, outra metáfora que se repete em algumas peças, dê a pista certa para ler estas peças. São como quadros de uma terra, afinal, mas vivos.

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