Dois anos após Snowden, privacidade e segurança permanecem em conflito

A ameaça terrorista continua a ser apontada para justificar o reforço da cibervigilância. Na Alemanha, a espionagem nas redes sociais desencadeou uma tempestade política. No Reino Unido, David Cameron quer aceder ao WhatsApp e ao iMessage.

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Parlamento e Polícia Judiciária negam terem sido alvo de ataques informáticos. NUNO FERREIRA SANTOS

Desde 1962 que a Alemanha não acusava um jornalista de traição. Em Julho último, o director do site noticioso especializado em direitos digitais Netzpolitik, Markus Beckedahl (que esta segunda-feira abre o ciclo de palestras "Viver na Sociedade Digital" do Goethe-Institut, em Lisboa), e o jornalista Andre Meister foram notificados pela Procuradoria-Geral germânica numa investigação sobre uma fuga de informação nos serviços secretos internos alemães. Em causa estavam dois artigos relativos à constituição de uma unidade especial da secreta para a vigilância das redes sociais. As notícias, publicadas em Fevereiro e Abril, baseavam-se em documentos confidenciais que detalhavam a iniciativa e incendiaram o debate sobre a privacidade num país que, devido ao trauma nazi e soviético, é especialmente sensível à ideia de uma recolha de dados privados.

O que foi interpretado pelos jornalistas e por grande parte da classe política germânica como uma tentativa de intimidação por parte do Estado acabou por ter o efeito contrário, renovando a atenção mediática sobre os planos da secreta e multiplicando protestos em defesa da liberdade de imprensa. Em Agosto, o caso transformou-se num escândalo político. Num acto raro de dissensão pública entre os poderes judicial e executivo, o procurador-geral Harald Range denunciou pressões “intoleráveis” por parte do Governo de Angela Merkel para que o caso fosse arquivado. Dias depois, o ministro da Justiça Heiko Maas demitiu Range, citando uma completa quebra de confiança no magistrado.

A investigação contra o Netzpolitk foi travada e o órgão digital recebeu milhares de euros em donativos. Mais relevante ainda, a sociedade civil alemã pronunciou-se mais uma vez em defesa da privacidade online na era pós-Snowden.

No Reino Unido, o debate avança noutro sentido. O primeiro-ministro conservador David Cameron pede desde Janeiro a aprovação de um diploma legislativo para combater a chamada encriptação end-to-end, que possibilita a comunicação confidencial entre dois utilizadores mesmo através de uma rede não protegida – casos concretos são os dos serviços de mensagem WhatsApp, iMessage e Snapchat, entre outros. Na prática, Londres exige a empresas como a Apple que disponibilizem às autoridades um canal de acesso a estas comunicações teoricamente blindadas em caso de investigação criminal.

Na sua versão actualizada, de 4 de Novembro, a Investigatory Powers Bill insere-se num movimento mais vasto do Governo de Cameron contra a livre utilização de comunicações digitais, que também inclui o bloqueio automático de conteúdos pornográficos na Internet. Esta última medida é objecto de um diferendo entre Londres e Bruxelas, depois de o Parlamento Europeu ter consagrado, em Outubro, a neutralidade da Internet, proibindo os fornecedores de acesso à rede de discriminarem serviços e conteúdos online, salvo num reduzido conjunto de situações.

Se o Executivo inglês tem repetidamente aludido ao combate à pedofilia e à exposição de menores a conteúdos explícitos no caso do bloqueio da pornografia, a ameaça terrorista é abertamente utilizada como justificação para o fim das comunicações encriptadas. O argumento é repetido em vários países ocidentais e ganhou força após os atentados de 13 de Novembro em Paris, apesar de as investigações judiciais em curso não terem ainda comprovado que a célula terrorista sedeada na Bélgica tenha recorrido a serviços de mensagens encriptadas. A informação veiculada pela Forbes de que o Estado Islâmico teria organizado os ataques através da plataforma da PlayStation 4, por exemplo, foi desmentida.

Activistas como Beckedahl acusam as autoridades europeias e norte-americanas de orquestrarem uma campanha mediática destinada a criar um clima favorável a uma limitação das liberdades digitais. Dois anos após as estrondosas revelações feitas pelo antigo agente da NSA Edward Snowden sobre a dimensão do aparelho global de espionagem informática ao serviço das capitais ocidentais, a opinião pública revela-se dividida. Nos Estados Unidos, e de acordo com um inquérito conduzido em Maio pelo Pew Research Center, 54% dos norte-americanos opunha-se à recolha de dados digitais em massa, no âmbito do combate ao terrorismo. Já no Reino Unido, e uma semana após o ataque à redacção do Charlie Hebdo, em Janeiro, 52% dos inquiridos apoiavam um reforço dos mecanismos de monitorização das comunicações privadas. 

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