José Luandino Vieira: “Isto não é um livro. São 12 anos de vida”

O escritor angolano Luandino Vieira apresentou esta terça-feira Papéis da Prisão, um livro que escapa a géneros literários e que foi equiparado, pela experiência que conta, a outras memórias de cárcere. O escritor evita as comparações e não fala dos actuais presos políticos em Angola.

Fotogaleria
Luandino Vieira a autografar o seu livro Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Nuno Ferreira Santos

"O que está aqui não é um livro. São 12 anos da vida de uma pessoa multiplicados por cada segundo, e nesses 12 anos eu multiplicava cada segundo por tudo quanto me vinha à cabeça e nem sempre eram coisas recomendáveis.” Foi desta forma que José Luandino Vieira, escritor angolano, vencedor em 2006 do Prémio Camões – que recusou receber  se referiu a Papéis da Prisão: apontamentos, diário, correspondência (1962-1971). Um volume editado pela Caminho que reúne o conjunto da sua produção diarística desde que foi detido pela PIDE no Aljube, em Novembro de 1961, passando por várias cadeias em Luanda, até ao dia em que saiu do Tarrafal, em 1972. Rui Vieira Nery, que apresentou a obra esta terça-feira ao fim da tarde, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, na presença do autor, chamou ao livro um “monumento literário e cívico”

“Ao reler-me encontro em tudo ainda uma pequeníssima fagulha de qualquer coisa que precisa de ser soprada”, disse Luandino Vieira sobre a decisão de tornar agora públicos os 17 cadernos que resultaram desse período da sua vida, e que somam aproximadamente duas mil folhas manuscritas. A essa razão, somou outra: “publicar depois de morto é muito fácil, ninguém assume a responsabilidade”, ironizou, numa curta intervenção onde se confessou várias vezes emocionado.

Ao longo dos cerca de três anos que decorreram desde o dia em que ligou a Zeferino Coelho, o editor da Caminho (onde tem publicada a sua obra), dizendo-lhe que lhe queria “mostrar uma coisa” até ao momento em que se constituiu uma equipa do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, liderada por Margarida Calafate Ribeiro, Mónica V. Silva e Roberto Vecchio, traçou-se um plano que terminou num livro difícil de catalogar.

É Margarida Calafate quem traça a “biografia do livro” que “foge a qualquer classificação de género”. Um livro onde, sublinha a investigadora, está patente a “força de um projecto literário e político”. Ser escritor e “ser Angola independente e livre”.

Natural de Lagoa do Furadouro, perto de Vila Nova de Ourém, onde nasceu em 1935, José Vieira Mateus foi com os pais para Luanda quando tinha três anos. Passou lá a infância e a juventude, estudou, tornou-se cidadão angolano, participou no movimento de libertação nacional – o MPLA, um apoio que manteve até 1978 – e, em homenagem à cidade onde cresceu e aprendeu kimbundu, mudou o nome para Luandino.

Preso pela primeira vez pela PIDE em 1959, justamente pela sua ligação ao MPLA, voltaria à prisão em 1961, desta vez por um longo período durante o qual escreveu alguns dos seus livros mais emblemáticos,entre os quais Luuanda (1963), revelando nesses escritos uma influência do brasileiro Guimarães Rosa. E escreveu ainda estes Papéis da Prisão.

A experiência de cárcere de Luandino Vieira surge num momento quente em relação ao que se passa justamente nas prisões de Angola, com a recente prisão preventiva de 15 activistas acusados de rebelião e tentativa de organizar um golpe de Estado no país e que resultou na greve de fome de um deles, o rapper Luaty Beirão. Os activistas estão actualmente em julgamento. Mantendo o silêncio e a discrição que o caracteriza, Luandino não falou do tema na sua intervenção e evitou os jornalistas e as questões que necessariamente lhe seriam colocadas. "O Luandino sempre foi um homem muito reservado, muito tímido", justifica o seu editor, Zeferino Coelho, apontando a dificuldade que sempre teve para  apresentar um novo livro do Prémio Camões em que ele estivesse presente. Também sobre a sua recusa em receber o Prémio Camões, pouco se sabe além das "razões pessoais" que então invocou, não tendo dado entrevistas nem feito qualquer declaração. Outro mistério de Luandino que permanece é a razão pela qual deixou Angola, na década de noventa, e regressou a Portugal onde vive isolado, num convento do amigo José Rodrigues.

 Falar de sofrimento

Os 17 cadernos “meticulosamente datados”, como se lhes referiu Margarida Calafate, tinham por título "Ontem, Hoje, Amanhã..." São compostos por fragmentos de natureza diversa. Anotações diarísticas, correspondência, postais, desenhos, cancioneiros populares recolhidos junto de outros presos, esboços literários e exercícios de tradução, ditos em quimbundo, recortes jornalísticos, apontamentos.

A data de início de escrita não coincide com a entrada na prisão. Foram precisos cerca de seis meses para que Luandino Vieira construísse uma rede que lhe permitiu escrever um livro que os presentes compararam, pela qualidade e força do testemunho, a Cadernos do Cárcere, de António Gramsci, aos escritos de Rosa Luxemburgo, Graciliano Ramos ou Primo Levi.

“A arte da memória perpassa por todos os papéis”, declarou Roberto Vecchio, lembrando precisamente Primo Levi e o dever da memória em momentos extremos. “Como na grande literatura do cárcere, o sofrimento torna-se aqui uma experiência partilhada com o leitor”, disse.

“O tempo falará da importância ou não importância destes papéis. O nome do autor não conta. Aliás, este livro não devia ter autor”, declarou Luandino Vieira, confessando o incómodo por ver o seu nome ao lado dos grandes memorialistas do cárcere, acrescentando: “O meu sofrimento – não gosto nada desta palavra – comparado com os milhões que na nossa terra sofreram e morreram... Falar de sofrimento por ter estado num campo de trabalho de Chão Bom (Tarrafal) para mim seria uma obscenidade.”

O livro é editado quando se comemoram os 40 anos de independência de Angola, mas Luandino Vieira não fez qualquer alusão a esta data. A viver actualmente em Vila Nova de Cerveira, o escritor raramente aparece em público, evita dar entrevistas, “preza a discrição”, como lembrou ainda na apresentação o amigo de infância, o escritor angolano Arnaldo Santos, que quis chamar a atenção para o Luandino poeta, visível em toda a sua prosa.

Também está nestes papéis um lirismo sublinhado por Vieira Nery e Margarida Calafate, que insistem no valor político, literário e histórico deste Papéis da Prisão. “Esta é uma obra sobre a liberdade e sobre o que temos de fazer, o que temos de lutar quando ela falha”, afirmou Margarida Calafate. “Este livro é um retrato de Luandino. É um documento extraordinário que não tem comparação na história da literatura de língua portuguesa”, declarou Zeferino Coelho.

Já Luandino quis homenagear também o kimbundu, a língua onde cresceu. "Em kimbundu, ‘não esquece’ diz-se: kujimbé”, escreve Luandino em epígrafe. “Quero continuar a contribuir para a construção da nossa cultura”, disse esta terça-feira Luandino Vieira noutra lembrança, a de uma carta, onde escreveu: "o meu amor por Angola é afinal uma forma do meu amor pela humanidade. Nunca serei um mau nacionalista.”

Actualizado dia 25 de Novembro: explicita que Luandino Vieira não referiu na apresentação os activistas políticos angolanos actualmente em julgamento

Sugerir correcção
Ler 1 comentários